IV DOMINGO DA QUARESMA (ANO C)

A PALAVRA

A liturgia de hoje convida-nos à descoberta do Deus do amor, empenhado em conduzir-nos a uma vida de comunhão com Ele.

O Evangelho (Lc 15,1-3.11-32) apresenta-nos o Deus/Pai que ama de forma gratuita, com um amor fiel e eterno, apesar das escolhas erradas e da irresponsabilidade do filho rebelde. E esse amor lá está, sempre à espera, sem condições, para acolher e abraçar o filho que decide voltar. É um amor entendido na linha da misericórdia e não na linha da justiça dos homens.

A segunda leitura (2Cor 5,17-21) convida-nos a acolher a oferta de amor que Deus nos faz através de Jesus. Só reconciliados com Deus e com os irmãos podemos ser criaturas novas, em quem se manifesta o homem Novo.

A primeira leitura (Js 5,9a.10-12), a propósito da circuncisão dos israelitas, convida-nos à conversão, princípio de vida nova na terra da felicidade, da liberdade e da paz. Essa vida nova do homem renovado é um dom do Deus que nos ama e que nos convoca para a felicidade.

Fonte: Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus

Leituras

Somos convidados, neste tempo de Quaresma, a uma experiência semelhante à que fez o Povo de Deus de que fala a primeira leitura: é preciso pôr fim à etapa da escravidão e do deserto, a fim de passar, decisivamente, à vida nova, à vida da liberdade e da paz. E a circuncisão? A circuncisão física é um rito externo, que nada significa… O que é preciso é aquilo a que os profetas chamaram a “circuncisão do coração” (cf Dt 10,16; Jr 4,4; cf. Jr 9,25): trata-se da adesão plena da pessoa a Deus e às suas propostas; trata-se de uma verdadeira transformação interior que se chama “conversão”. O que é que é preciso “cortar” na minha vida ou na vida da minha comunidade cristã (ou religiosa) para que se dê início a essa nova etapa? O que é que ainda nos impede de celebrar um verdadeiro compromisso com o nosso Deus?

Naqueles dias:
9ao Senhor disse a Josué:
‘Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito’.
10Os israelitas ficaram acampados em Guilgal e
celebraram a Páscoa no dia catorze do mês,
à tarde, na planície de Jericó.
11No dia seguinte à Páscoa comeram dos produtos da
terra, pães sem fermento e
grãos tostados nesse mesmo dia.
12O maná cessou de cair no dia seguinte,
quando comeram dos produtos da terra.
Os israelitas não mais tiveram o maná.
Naquele ano comeram dos frutos da terra de Canaâ.
Palavra do Senhor.

R. Provai e vede quão suave é o Senhor!

2Bendirei o Senhor Deus em todo o tempo,*
seu louvor estará sempre em minha boca.
3Minha alma se gloria no Senhor;*
que ouçam os humildes e se alegrem! R.

4Comigo engrandecei ao Senhor Deus,*
exaltemos todos juntos o seu nome!
5Todas as vezes que o busquei, ele me ouviu,*
e de todos os temores me livrou. R.

6Contemplai a sua face e alegrai-vos,*
e vosso rosto nóo se cubra de vergonha!
7Este infeliz gritou a Deus, e foi ouvido,*
e o Senhor o libertou de toda angústia. R.

Ser cristão é, antes de mais, aceitar essa proposta de reconciliação que Deus nos faz em Jesus. Significa que Deus, apesar das nossas infidelidades, continua a propor-nos um projeto de comunhão e de amor. Como é que eu respondo a essa oferta de Deus: com uma vida de obediência aos seus projetos e de entrega confiada em suas mãos, ou com egoísmo, autossuficiência e fechamento ao Deus da comunhão?

Irmãos:
7Se alguém está em Cristo,
é uma criatura nova.
O mundo velho desapareceu.
Tudo agora é novo.
18E tudo vem de Deus,
que, por Cristo, nos reconciliou consigo
e nos confiou o ministério da reconciliação.
19Com efeito,
em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo,
não imputando aos homens as suas faltas
e colocando em nós a palavra da reconciliação.
20Somos, pois, embaixadores de Cristo,
e é Deus mesmo que exorta através de nós.
Em nome de Cristo, nós vos suplicamos:
deixai-vos reconciliar com Deus.
21Aquele que não cometeu nenhum pecado,
Deus o fez pecado por nós,
para que nele nós nos tornemos justiça de Deus.
Palavra do Senhor.

A primeira chamada de atenção vai para o amor do Pai: um amor que respeita absolutamente as decisões – mesmo absurdas – desse filho que abandona a casa paterna; um amor que está sempre lá, fiel e inquebrável, preparado para abraçar o filho que volta. Repare-se: mesmo antes de o filho falar e mostrar o seu arrependimento, o Pai manifesta-lhe o seu amor; é um amor que precede a conversão e que se manifesta antes da conversão. É num Deus que nos ama desta forma que somos chamados a confiar neste tempo de “metanoia” (transformação espiritual).

Naquele tempo:
1Os publicanos e pecadores
aproximavam-se de Jesus para o escutar.
2Os fariseus, porém, e os
mestres da Lei criticavam Jesus.
‘Este homem acolhe os pecadores
e faz refeição com eles.’
3Então Jesus contou-lhes esta parábola:
11‘Um homem tinha dois filhos.
12O filho mais novo disse ao pai:
‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’.
E o pai dividiu os bens entre eles.
13Poucos dias depois, o filho mais novo
juntou o que era seu
e partiu para um lugar distante.
E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada.
14Quando tinha gasto tudo o que possuía,
houve uma grande fome naquela região,
e ele começou a passar necessidade.
15Então foi pedir trabalho a um homem do lugar,
que o mandou para seu campo cuidar dos porcos.
16O rapaz queria matar a fome
com a comida que os porcos comiam,
mas nem isto lhe davam.
17Então caiu em si e disse:
‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura,
e eu aqui, morrendo de fome.
18Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe:
`Pai, pequei contra Deus e contra ti;
19já não mereço ser chamado teu filho.
Trata-me como a um dos teus empregados’.
20Então ele partiu e voltou para seu pai.
Quando ainda estava longe, seu pai o avistou
e sentiu compaixão.
Correu-lhe ao encontro, abraçou-o,
e cobriu-o de beijos.
21O filho, então, lhe disse:
‘Pai, pequei contra Deus e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho’.
22Mas o pai disse aos empregados:
`Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho.
E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés.
23Trazei um novilho gordo e matai-o.
Vamos fazer um banquete.
24Porque este meu filho estava morto e tornou a viver;
estava perdido e foi encontrado’.
E começaram a festa.
25O filho mais velho estava no campo.
Ao voltar, já perto de casa,
ouviu música e barulho de dança.
26Então chamou um dos criados
e perguntou o que estava acontecendo.
27O criado respondeu:
`É teu irmão que voltou.
Teu pai matou o novilho gordo,
porque o recuperou com saúde’.
28Mas ele ficou com raiva e não queria entrar.
O pai, saindo, insistia com ele.
29Ele, porém, respondeu ao pai:
`Eu trabalho para ti há tantos anos,
jamais desobedeci a qualquer ordem tua.
E tu nunca me deste um cabrito
para eu festejar com meus amigos.
30Quando chegou esse teu filho,
que esbanjou teus bens com prostitutas,
matas para ele o novilho cevado’.
31Então o pai lhe disse:
`Filho, tu estás sempre comigo,
e tudo o que é meu é teu.
32Mas era preciso festejar e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e tornou a viver;
estava perdido, e foi encontrado’.’
Palavra da Salvação.

Reflexão

O PAI COM UM AMOR TEIMOSO

O IRMÃO MAIS VELHO: CABEÇA DURA E CORAÇÃO DURO

Jesus mostra-nos no irmão mais velho alguém que não se importa com os outros. Ele não se importa que o seu irmão possa ter problemas, que se sinta só, que esteja perdido, que tenha ido para longe… Ainda não aprendeu que tem um irmão, o que significa “ser um irmão“. Ele só entra em cena quase no fim, e o faz apenas para reclamar, protestar e repreender o seu pai. Não há registro de que tenha saído à procura do irmão pedido, ou mesmo ter olhado pela janela. Não há desejo de que ele regresse. Ele só quer preservar os seus direitos e fazer exigências.

Por outro lado, também desconhece a angústia, preocupação e tristeza do seu pai, de quem sente falta, que perdeu o sono, que sofre pelo filho que não está presente, que passa dias inteiros à porta para ver se o consegue ver, mesmo que apenas de longe. O mais velho está fisicamente em casa, constantemente ao lado do seu pai, mas o seu coração está muito longe…

Não desfruta da companhia do seu pai. Podemos provavelmente assumir que ele nem sequer pergunta ao seu pai como está, como se sente, se pode fazer alguma coisa por ele. Nem comenta com ele o que mais o aflige… Ele é o irmão “silencioso” e incomunicável. Para piorar a situação, ele não se sente livre. Estar em casa para ele significa: obedecer, trabalhar e cumprir. E sente-se terrível por outros tomarem tantas liberdades, viverem tão “relaxados”, e saltarem todas as regras e regulamentos. Ele cumpre impecavelmente as suas obrigações. Vive quase exclusivamente para si próprio. E é como se ele fosse filho único. Posso imaginá-lo a repreender, acusar e censurar o seu irmão, dando-lhe uma cara má e pressionando-o todos os dias a mudar e a comportar-se “como Deus ordena“. Ou seja: como ele.

Ele não tem iniciativa. Ele não assume riscos. Estar em casa para ele é um dever, e o seu pai deve estar grato porque ele MERECE. É um trabalho duro para ele ser bom! Mas falta-lhe a alegria, a ilusão. E até se permite repreender/corrigir o seu pai por ser tão preguiçoso, tão pouco exigente, por estragar tanto. No fundo ele não sabe o que significa TER UM PAI, NEM TEM A MÍNIMA IDEIA DO QUE SIGNIFICA SER UM FILHO E UM IRMÃO (estas três coisas são inseparáveis uma da outra). Suspeito mesmo que ele seja parcialmente culpado pelo fato do seu irmão partir. É muito desagradável viver com pessoas tão nervosas, tão perfeitas, tão complacentes.

Este filho mais velho está tão perdido ou mais perdido que o seu irmão… apesar de estar dentro de casa, apesar de aparentemente estar tão “em ordem” com o seu pai. Aqui são retratados os fariseus que murmuravam contra Jesus por comer com pecadores.

O IRMÃO MAIS NOVO: UMA CABEÇA VAZIA

Parece que o irmão mais novo foi ensinado ou compreendeu que estar em casa, e ser um bom filho… consiste em seguir muitas regras e deveres que lhe tiram a liberdade e não lhe permitem ser feliz. Ele gostaria de ser independente, e tomar as suas próprias decisões sem ter de se explicar a ninguém, muito menos ao seu irmão mais velho. E ele vai para longe: Longe de casa, longe do seu irmão, longe do seu pai… e também longe de si próprio. Não há explicações. Tem o direito de partir e de levar “o que é seu” consigo, para fazer o que lhe apetecer. Ele não parece importar-se com o desgosto que dá ao seu pai. E o pai deixa-o ir calmamente, sem sermões, sem ameaças ou avisos.

No início ele apenas se dedica a desfrutar do que tem, sem previsões… e as coisas lhe parecem bem. É por isso que não se apercebe que está vazio, sem objetivos, sem projetos, sem sonhos. Enquanto ele “tem“, não lhe faltam “amigos“, que tiram partido da sua fortuna, que o usam. Mas ele está realmente sozinho. E isto é… porque não tem tempo para pensar, analisar, refletir…

E, um dia, as coisas correram mal. Não sabemos quanto tempo demorou. Mas os problemas e o fracasso fizeram-no entrar em si mesmo. Ousou olhar para aquele coração aventureiro, tão ansioso por desfrutar, mas tão vazio e solitário… Mas ele ainda é demasiado teimoso para admitir: “COMETI UM ERRO“, mas… Não, apenas: “Estou com fome e havia comida em minha casa“. Não se trata de arrependimento, é a fome que o encoraja o regresso. E ele regressa convencido de que, apesar de tudo, o seu pai, pelo menos, lhe dará trabalho e pão. Nisso ele tinha razão. Porém, ficou muito aquém das suas expectativas.

A questão é que ele prepara seu pequeno discurso para ver se, mais uma vez, ele se safa. Quanto o longo caminho de volta para casa deve ter lhe custado. Ele não aspirou a ter seu lugar de volta, porque “ele não MERECE“. Nem ele pode recuperar o afeto de seu pai. Ele se contenta em ser apenas mais um diarista.

Ainda bem que há outra grande cabeça e um bom coração nesta história:

O PAI COM UM AMOR TEIMOSO

Este pai é muito diferente dos seus dois descendentes. A quem eles terão saído? O seu comportamento perturba os dois. Nesta história ele não abre a boca até quase ao final. No início, ele dá o que lhe é exigido. Ele não diz nada. Ele não protesta. Ele não censura. Ele não avisa. Ele não repreende. Ele não ameaça. Nem pede explicações…

Mas antes de lhe dar a palavra, Jesus descreve os seus “gestos”: o vê chegar, se emociona, corre e o enche de beijos. Ele não está interessado em explicações. Ele não pergunta para o que ele retorna ou por quê. E cortou o pequeno discurso que o filho estava tentando deixar escapar. Tampouco presta atenção ao “POUCO” que o filho lhe pede. Em vez disso, ela joga a casa pela janela, pulando de alegria por ter seu filho em casa novamente. Ele ainda terá que se esforçar para aprender o que é “ser filho“, e descobrir de uma vez por todas como é realmente o coração de seu pai e como ele vive naquela casa. Sem humilhações, punições, condições ou exigências. Apenas o desejo e a determinação de que ele seja e se comporte como um FILHO.

E COMO ESTÁ O NOSSO CORAÇÃO?

  • O pecado aqui consiste em estar “LONGE“: de si mesmo, de seu irmão, do seu Pai. E desperdiçar a própria vida.
  • Para rezar e saborear: o Pai está determinado a fazer-me sentir como um filho amado e colocar-me no meu lugar, que talvez não seja aquele que procurei, ou aquele em que estou agora, ou aquele com o qual estou tentando me contentar
  • Alguns verbos que nos desafiam: acolher, sair correndo, receber, celebrar o regresso…

Esta parábola é um convite à fraternidade, à comunhão, ao compromisso de dar alegria ao Pai, trazendo para casa os irmãos que  foram embora. Pelo menos… não os afugentemos com as nossas atitudes!

Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf
Imagem principal: PIXABAY
Fonte: Ciudad Redonda