A VIDA COTIDIANA COMO SACRAMENTO

ARTIGOS

Para os cristãos, no fundo, o mundo inteiro é santo e sagrado; e todas as coisas nele, especialmente as coisas físicas, são material potencial para sacramento. Nós, cristãos, acreditamos que o mundo mostra a glória de Deus, que cada um de nós é feito à sua imagem e semelhança, que nossos corpos são templos do Espírito Santo, que o pão que comemos é sacramental, e que em nosso trabalho e em nosso abraço sexual somos co-criadores com Deus.

Este lugar é onde podemos compartilhar o que somos. Esta é uma crença impressionante, e nos separa da maioria das outras religiões, nas quais uma parte muito importante do objetivo é libertar-se do físico, da terra. Mas no cristianismoo Verbo se faz carne“. Deus entra no físico e, então, tudo que é físico é potencialmente sacramental. É digno de nota que a Escritura, naquela famosa linha sobre Deus que se faz carne, não diz simplesmente que Deus se fez homem, ser humano. Diz mais: “Deus se faz carne“, entra no físico, na terra. Portanto, tudo o que é físico é potencialmente sacramento.

Mas estamos sempre lutando com isso. Nossas vidas cotidianas estão frequentemente tão dispersas, tão envolvidas em um gole de uísque e tão fixadas em coisas que parecem profanas, que a ideia de que tudo é sacramento pode parecer mais uma ilusão do que teologia. O mundo nem sempre mostra a glória de Deus; o que fazemos com nossos corpos às vezes nos faz questionar se realmente somos templos do Espírito Santo; a forma absurda como comemos ou bebemos frequentemente não fala muito de sacramentalidade, e a linguagem que utilizamos para falar de nosso trabalho, de sexo e de nossas vidas em geral raramente alude ao fato de que somos co-criadores com Deus.

Por quê? Por que não somos mais frequentemente conscientes do fato de que em nossa vida cotidiana estamos pisando em terreno sagrado e de que nossas atividades diárias estão carregadas de sacramento?

Há muitas razões, a maioria delas enraizadas no fato de que somos humanos, que a vida é longa, e que não é fácil manter símbolos elevados, linguagem e ideais elevados na sujeira e bagunça da vida diária. Comer, trabalhar e fazer amor deveriam ser ações sagradas, mas com demasiada frequência as fazemos mais para sobreviver do que por qualquer tipo de sacramentalidade; e o “vamos levando” torna-se o símbolo mais elevado que conseguimos alcançar em um dia de trabalho. Lamento dizer isso. Não é fácil, dia após dia, hora após hora, experimentar sacramento nas ações ordinárias de nossas vidas.

Mas há ainda outra razão que explica por que perdemos o sentido da sacramentalidade em nossas vidas, a saber, temos POUQUÍSSIMA ORAÇÃO e pouco ritual em torno de nossas ações ordinárias. Além disso, raramente utilizamos a oração ou o ritual para conectar nossas ações – comer, beber, trabalhar, socializar, fazer amor, conceber coisas – aos seus origens sagrados. Por exemplo:

Entre os Índios Osage, há um costume significativo: quando nasce uma criança, antes que se permita que ela mame no peito de sua mãe, leva-se à sala uma pessoa sagrada, alguém que tenha “falado com os deuses”. Esta “pessoa sagrada” recita ao recém-nascido a história da criação do mundo e dos animais terrestres. Enquanto este ritual não é realizado, o bebê não pode ser amamentado. Mais tarde, quando a criança tem idade suficiente para beber água, a mesma pessoa sagrada é chamada novamente, desta vez para contar à criança a história da criação e dos origens sagrados da água. Só depois de ouvir esta história a criança recebe água. Depois, quando a criança tem idade suficiente para consumir alimentos sólidos, a mesma “pessoa que falou com os deuses” é chamada novamente para contar à criança a história dos origens dos grãos e de outros alimentos. O objetivo de tudo isso é fazer a criança entender que comer não é simplesmente uma questão física, mas também religiosa.

Meus pais e minha geração faziam isso também, à sua maneira: Eles abençoavam os campos, os bancos de trabalho e os quartos, rezavam antes e depois de cada refeição, e alguns deles iam a uma igreja para propor casamento ao seu parceiro. Essa era a maneira deles de contar a história dos origens sagrados da água antes de bebê-la.

Hoje, geralmente, perdemos tanto o modo mítico dos Índios Osage quanto a forma piedosa dos meus pais. Vivemos, comemos, trabalhamos e fazemos amor sem esses símbolos elevados. Geralmente, não conectamos nosso alimento origem sagrada, não consideramos nosso trabalho como uma co-criação com Deus, não abençoamos nossos locais de trabalho nem nossas salas de reunião, e nos assustaríamos com a mera ideia de abençoar um quarto onde ocorre o sexo.

E assim somos mais pobres por isso, não apenas religiosamente, mas também humanamente. Quando nossas atividades cotidianas não são sacramentais, elas logo se tornam planas, sem sentido, e compensamos isso inconscientemente aumentando a dose.

Não tenho certeza de para onde deveríamos ir com tudo isso, já que não nos sentimos atraídos nem pelos mitos nem pela piedade de antigamente; mas, a menos que encontremos a oração e os rituais para conectar nossos comer, trabalhar e fazer amor à sua origem sagrada, a vida ordinária continuará sendo apenas isso, vida ordinária, nada especial, simplesmente a sujeira e bagunça de seguir em frente.

Texto: RON ROLHEISER
Fonte: CIUDAD REDONDA