O tempo da QUARESMA é um período de quarenta dias que possui significados em diferentes níveis. Trata-se de um tempo de preparação para a Páscoa no contexto atual do povo de Deus. Neste tempo quaresmal é sugerido dedicar mais tempo e intensidade à oração e devoção, reconhecendo a nossa necessidade de Deus. Os quarenta dias quaresmais são um memorial das quarentenas bíblicas, tais como:
- os quarenta dias de Jesus no deserto, onde enfrentou tentações antes de iniciar o seu ministério;
- os quarenta dias de Moisés no Sinai, onde recebeu as tábuas da lei;
- os quarenta dias da peregrinação do profeta Elias em direção às fontes do Yahvismo, simbolizando um período de busca espiritual;
- os quarenta dias do Ressuscitado antes da ascensão à glória.’
MEMÓRIA DO CAMINHO DE JESUS
Durante o período da Quaresma, somos convidados a reviver e renovar nosso compromisso batismal. Através do sacramento do batismo, somos incorporados ao mistério de Cristo, participando ativamente de sua vida, morte e ressurreição. Essa participação não é apenas um evento do passado, mas algo presente e dinâmico em nosso cotidiano.
A presença sacramental, que recebemos no batismo, visa não apenas ser uma presença simbólica, mas busca conscientemente transformar nossas ideias e práticas diárias. Ela atua como um impulso interno, orientando-nos em um caminho de conversão, inspirando-nos a adotar o estilo de vida exemplificado por Jesus.
Neste tempo especial, somos chamados a uma reflexão mais profunda sobre como vivemos nossa fé. A Quaresma não é apenas um período de abstinência, mas uma oportunidade para internalizar e vivenciar de maneira mais plena os ensinamentos e valores transmitidos pelo caminho de Jesus. Ao fazer isso, buscamos uma transformação interior que nos aproxime cada vez mais do exemplo deixado por Cristo.
Que, durante este tempo sagrado, possamos não apenas recordar a jornada de Jesus, mas também internalizar seus ensinamentos, permitindo que a presença sacramental se torne uma força motriz em nossa busca por uma vida mais alinhada com o amor, a compaixão e a justiça.
PRESENÇA DO ITINERÁRIO BATISMAL
Em meio à Quaresma, somos confrontados com a graça e a responsabilidade de sermos discípulos de Jesus. Este período evidencia a jornada de seguir os passos de Jesus, que nos leva ao rechaço, à condenação e à crucificação, mas também à ressurreição. O que esse desfecho histórico de Jesus implica para seus seguidores?
- Seguir Jesus crucificado é ser um iconoclasta diante das idolatrias e ideologias absolutas, em cujo nome o ser humano é sacrificado. Se Deus ressuscitou o Jesus crucificado, o evento pascal se torna uma crítica contundente e uma desautorização dos poderes que conduzem à morte dos inocentes. O Messias crucificado representa uma crítica profunda ao nosso entendimento de Deus, desafiando tanto os teísmos quanto os ateísmos. A cruz da esperança messiânica é, em si, a ESPERANÇA DA CRUZ, florescendo e renascendo nos momentos em que tudo parece perdido. Isso acontece graças à fidelidade e às promessas do Deus da vida.
- Seguir a Jesus crucificado é se unir em solidariedade às vítimas da sociedade, é escolher estar ao lado dos crucificados. Aos pés do Cristo crucificado, aprendemos a contemplar e reconhecer sua presença nos crucificados ao longo da história, entre indivíduos e comunidades. Nas profundezas das feridas do Crucificado, as cicatrizes da humanidade são desnudadas e expostas.
- Seguir a Jesus crucificado é vivenciar que a cruz dos seguidores é a resultante da batalha pelo reino. Não se trata de qualquer cruz, mas da cruz da esperança messiânica. É a dor que emana da luta contra o sofrimento. O caminho de seguir Cristo nos leva a percorrer a jornada que Ele mesmo percorreu; e o seguir o Messias crucificado nos conduz à crucificação, isto é, ao repúdio, à marginalização e à exclusão. Lembrai-vos da palavra que vos disse: O servo não é maior do que o seu senhor. Se me perseguiram, também vos hão de perseguir. Se guardaram a minha palavra, hão de guardar também a vossa (João 15,20).
- Seguir a Jesus crucificado vai além de simplesmente adotar posturas passivas e aceitar o destino com fatalismo. O convite para segui-Lo não implica em se resignar passivamente diante das circunstâncias. A cruz de Jesus representa a rebeldia; não é um símbolo de adormecimento, mas sim um despertar constante e uma inquietude que desafia.
- Seguir a Jesus crucificado não significa carregar cruzes artificiais ou inventadas; significa enfrentar a dor e as dificuldades que surgem naturalmente desse compromisso. O testemunho de uma vida à imagem de Jesus tem seu preço neste mundo. Dessa forma, seguir Jesus se torna um compromisso com o Crucificado. A primeira carta de Pedro, ao seguir a lógica do batismo, nos lembra disso: ‘Se, ao praticarem o bem, suportarem o sofrimento, isso é algo belo diante de Deus. Pois para isso foram chamados, já que também Cristo sofreu por vocês, deixando um exemplo para que sigam seus passos’ (1Ped 2:20b-21). A dor de Jesus na cruz não deve levar à glorificação da dor em si, como se a dor, por si só, fosse redentora. É necessário estar atento à deturpação da dor nas interpretações da cruz com objetivos redentores. Nem toda dor é redentora. Não podemos atribuir a ela um valor reparador, como se Deus precisasse de reparação ou fosse um credor implacável exigindo compensação. O Pai de Jesus não requer ‘sangue’ para Sua glória; Ele é capaz de perdoar gratuitamente. O Pai não depende do sacrifício de Seu Filho para demonstrar benevolência à humanidade que Ele criou. Ele não é um Deus perpetuamente irado.
- Seguir a Jesus crucificado é abraçar plenamente as implicações de nos identificarmos com seu modo de vida e missão. Essa identificação nos conduz por um caminho marcado por rejeição, incompreensão e marginalização neste mundo. A crucificação de Jesus não apenas representa o desfecho inevitável de seu estilo de vida livre, crítico e misericordioso; é a culminação máxima de sua trajetória histórica. Embarcar na jornada de segui-lo é adentrar corajosamente em um itinerário repleto de desafios e perigos, mas também de significado e propósito profundos.
- Seguir a Jesus crucificado em nome da lei implica uma renúncia radical à ideia de mérito como caminho de salvação. A presença do Ressuscitado crucificado se manifesta através da fé, puramente pela graça divina. Adorar o Deus do Crucificado envolve a ruptura com os ídolos do poder, da posse e da dominação, reconhecendo que a verdadeira adoração transcende essas formas de controle e influência.
- Seguir o Crucificado implica vivenciar o poder da fragilidade: O amor de Deus em Cristo prevalece mesmo onde é rejeitado e derrotado. Este amor supera a própria morte. A ressurreição de Jesus, aquele que foi crucificado, desvela o cerne do coração divino. Ele se manifesta como um amor que é dado de forma gratuita, abraçando a todos de maneira universal e incondicional.
- Seguir o Messias crucificado refere-se a adotar corajosamente a jornada que envolve os inevitáveis sofrimentos inerentes à experiência humana, que é caracterizada por contingências e limitações finitas. Além disso, implica encarar a própria morte não como um fim, mas como o início definitivo de uma existência plena e significativa. A expressão “beleza escatológica da cruz” destaca a ideia de que, através do sacrifício e da superação das adversidades, emerge uma beleza profunda e transcendente, especialmente quando se considera a perspectiva escatológica, que se relaciona com a compreensão do destino final e redentor da humanidade. Essa abordagem convida a uma reflexão sobre a transformação e renovação que podem surgir a partir da aceitação corajosa das vicissitudes da vida e da morte.
- Seguir o Messias crucificado traz consigo a retificação de certas práticas de mortificação que se baseiam na ideia de que toda dor é redentora. Falsifica-se o sentido da cruz quando se recorre a ela para sancionar a opressão, a submissão em nome do poder. Escutar e adorar o Deus da cruz requer revisar a imagem de Deus, contaminada por ideias de castigo, de satisfação, de dívida. O Deus da cruz é o Deus do amor incondicional feito silêncio desconcertante no crucificado.
Texto: Bonifacio Fernández, cmf
Fonte: Comunidade católica Ciudad Redonda (Missionários Claretianos)