A liturgia deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre alguns valores que acompanham o desafio do “Reino”: A HUMILDADE, A GRATUIDADE, O AMOR DESINTERESSADO.
O Evangelho (Lc 14,1.7-14) coloca-nos no ambiente de um banquete em casa de um fariseu. O enquadramento é o pretexto para Jesus falar do “BANQUETE DO REINO”. A todos os que quiserem participar desse “banquete”, Ele recomenda a humildade; ao mesmo tempo, denuncia a atitude daqueles que conduzem as suas vidas numa lógica de ambição, de luta pelo poder e pelo reconhecimento, de superioridade em relação aos outros… Jesus sugere, também, que para o “banquete do Reino” todos os homens são convidados; e que a gratuidade e o amor desinteressado devem caracterizar as relações estabelecidas entre todos os participantes do “banquete”.
Na primeira leitura (Eclo 3,19-21.30-31), um sábio dos inícios do séc. II a.C. aconselha a humildade como caminho para ser agradável a Deus e aos homens, para ter êxito e ser feliz. É a reiteração da mensagem fundamental que a Palavra de Deus hoje nos apresenta.
A segunda leitura (Hb 12,18-19.22-24a) convida os crentes instalados numa fé cómoda e sem grandes exigências, a redescobrir a novidade e a exigência do cristianismo; insiste em que o encontro com Deus é uma experiência de comunhão, de proximidade, de amor, de intimidade, que dá sentido à caminhada do cristão. Aparentemente, esta questão não tem muito a ver com o tema principal da liturgia deste domingo; no entanto, podemos ligar a reflexão desta leitura com o tema central da liturgia de hoje – a HUMILDADE, a GRATUIDADE, o AMOR DESINTERESSADO – através do tema da exigência: a vida cristã – essa vida que brota do encontro com o amor de Deus – é uma vida que exige de nós determinados valores e atitudes, entre os quais avultam a humildade, a simplicidade, o amor que se faz dom.
Leituras
Ser humilde significa assumir com simplicidade o nosso lugar, pôr a render os nossos talentos, mas sem nunca humilhar os outros ou esmagá-los com a nossa superioridade. Significa pôr os próprios dons ao serviço de todos, com simplicidade e com amor. Quando somos capazes de assumir, com simplicidade e desprendimento, o nosso papel, todos reconhecem a nossa contribuição, aceitam-nos, talvez nos admirem e nos amem… É aí que está a “SABEDORIA”, quer dizer, o segredo do êxito e da felicidade.
e assim encontrarás graça diante do Senhor.
Muitos são altaneiros e ilustres,
mas é aos humildes que ele revela seus mistérios.
e ele não compreende.
e com ouvido atento deseja a sabedoria.
Palavra do Senhor.
Derramastes lá do alto uma chuva generosa,
e vossa terra, vossa herança, já cansada, renovastes.
R. Com carinho preparastes uma mesa para o pobre.
6 Dos órfãos ele é pai, e das viúvas protetor: *
é assim o nosso Deus em sua santa habitação.
7a É o Senhor quem dá abrigo, dá um lar aos deserdados, *
b quem liberta os prisioneiros e os sacia com fartura. R.
10Derramastes lá do alto uma chuva generosa, *
e vossa terra, vossa herança, já cansada, renovastes;
11 e ali vosso rebanho encontrou sua morada; *
com carinho preparastes essa terra para o pobre. R.
Jesus intimou-nos a superar a perspectiva de um Deus terrível, opressor, vingativo,
de quem o homem se aproxima com medo; em seu lugar, Ele apresentou-nos a religião
de um Deus que é Pai, que nos ama, que nos convoca para a comunhão com Ele e com os irmãos e que insiste em associar-nos como “FILHOS” à sua família. Tenho consciência de que este é o verdadeiro rosto de Deus e que o Deus terrível, de quem o homem não se pode aproximar, é uma invenção dos homens?
da reunião festiva de milhões de anjos;
de Deus, o Juiz de todos;
dos espíritos dos justos, que chegaram à perfeição;
Na nossa sociedade, agressiva e competitiva, o valor da pessoa mede-se pela sua capacidade de se impor, de ter êxito, de triunfar, de ser o melhor… Quem tem valor é quem consegue ser presidente do conselho de administração da empresa aos trinta e cinco anos, ou o empregado com mais índices de venda, ou o condutor que, na estrada, põe em risco a sua vida, chegam uns segundos à frente dos outros… Todos os outros são vencidos, incapazes, fracos, olhados com comiseração. Vale a pena gastar a vida assim? Estes podem ser os objetivos supremos, que dão sentido verdadeiro à vida do homem?
E eles o observavam.
Então contou-lhes uma parábola:
não ocupes o primeiro lugar.
Pode ser que tenha sido convidado
alguém mais importante do que tu,
Então tu ficarás envergonhado
e irás ocupar o último lugar.
Assim, quando chegar quem te convidou,
te dirá: ‘Amigo, vem mais para cima’.
E isto vai ser uma honra para ti
diante de todos os convidados.
não convides teus amigos, nem teus irmãos,
nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos.
Pois estes poderiam também convidar-te
e isto já seria a tua recompensa.
Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos”.
Palavra da Salvação.
Fonte: Liturgia Diária – CNBB
Reflexão
COM HUMILDADE E DESINTERESSE
As leituras deste domingo apresentam-nos duas atitudes que parecem ter desaparecido dos nossos dicionários, e que nos tornariam pessoas melhores, parecidos ao Filho de Deus, que aceitamos como o mestre da vida: HUMILDADE e DESINTERESSE.
A primeira leitura do livro do Eclesiástico começou assim:
Filho realiza teus trabalhos com mansidão e serás amado mais do que um homem generoso. Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade…
Esta palavra “humildade” é frequentemente associada a uma pessoa tímida, uma violeta encolhida, alguém que nunca se opõe a nada ou a ninguém, que fica facilmente satisfeito e suporta tudo, por assim dizer.
Em tempos recentes e em certas espiritualidades com pouco apoio bíblico, a humildade tem sido mal interpretada como humilhação, “resignação“, como aturar tudo e engolir tudo, como ficar calado sem se queixar quando se é pisado, como se rebaixar… Assim, certos maus diretores espirituais fomentaram marionetes passivas, submissas, dóceis, pessoas despersonalizadas… em vez de pessoas maduras, livres, responsáveis e dignas. O fato é que na nossa cultura não é bem visto, não é uma virtude que seja apreciada ou admirada.
A humildade é uma virtude única do cristianismo. Não se encontra em outras religiões. Mesmo o que encontramos no Antigo Testamento não corresponde à forma como é vivido e explicado por Jesus Cristo. Quando proclama no Sermão da Montanha: “bem-aventurados são os humildes“, ou quando diz de si mesmo “aprende comigo que sou manso e humilde de coração“, não está de modo algum a nos convidar a nos demitir, a nos calar ou a aceitar passivamente o que quer que aconteça diante dos nossos olhos, ou o que quer que nos façam, ou a nos deixar pisar ou humilhar, perdendo a nossa dignidade e os nossos direitos… pois não foi e não agiu assim, nem propôs tais coisas a ninguém.
- A humildade é o oposto do orgulho, da ousadia de olhar para os outros; é o oposto da arrogância, da autossuficiência, ou da utilização dos outros em nosso benefício.
- A humildade é uma forma concreta de estar perante Deus e os homens, como aquele publicano da parábola que rezava no fundo do templo, e cuja oração foi ouvida por Deus, reconhecendo a nossa verdade.
- Humilde é aquele que sabe colocar-se ao nível do outro, e quando necessário, ainda mais baixo, como Jesus quando se ajoelhou para lavar os pés dos seus discípulos. O Mestre, o Filho de Deus, baixou-se – como diz São Paulo – para se colocar ao nível daqueles que eram mais baixos, em solidariedade a eles.
- Humilde é aquele que se aceita como é, sem se dar importância a si próprio, mas reconhecendo os seus valores e talentos. Ou seja, não podemos chamar “humilde” àquele que diz de si mesmo: “Não o posso fazer, valho menos que os outros, não o mereço, o que eu fiz não é importante”… Não é “humilde” acreditar que os outros são sempre melhores do que eu, que possuem mais qualidades e recursos do que eu. Não é humilde valorizar-se pouco, e acreditar que alguém poderia fazer muito melhor, que não se merece reconhecimento ou aplauso pelas suas realizações. Isto, em vez de humildade, seria uma “falta de autoestima” e a ajuda de um especialista não faria mal.
- Humilde é aquele que está sempre pronto a aprender com os outros, porque há sempre algo a aprender de todos. A pessoa humilde não se retrai em si mesma, e ousa pedir ajuda, não finge resolver todos os seus problemas sozinha; aquela que tenta consultar os outros antes de tomar as suas decisões.
Certamente se eu lhe perguntasse se “você é humilde“, e mesmo que ser humilde lhe pareça uma virtude a ser encorajada…, seria difícil para você responder:
- Não se sentiu por vezes melhor do que outros, tratando-os com certo desprezo? Não olhou com desdém para ninguém?
- Você acredita que ninguém vai te ensinar nada, que você tem ideias muito claras e quase sempre tem razão? Também pode ser perguntado assim: Com quem você aprende, quem te ensina coisas todos os dias, e você os acolhe com gratidão? Qual foi a última coisa que você aprendeu com alguém? De quem?
- Você gosta de se dar importância, você se coloca no centro das conversas, você tenta fazer com que todos saibam de seus sucessos? Você é capaz de se colocar no lugar do outro?
Mas o outro extremo também deve ser vigiado. Algumas pessoas carecem precisamente do oposto: de se amar um pouco, de se valorizar, de reconhecer os seus valores e qualidades, com alegria, com espírito de serviço, com coragem para assumir responsabilidades e tomar decisões, para estar à vontade com a maneira de ser, mesmo que haja sempre espaço para melhorias. Essa famosa definição de Santa Teresa de Jesus: “humildade é andar na verdade“. E a minha verdade e que tenho muitos dons e talentos, porque todos somos filhos de Deus, e Ele fez-nos a todos bons, valiosos, únicos. A humildade bíblica implica valorizar-se a si próprio e valorizar os outros no seu devido lugar, e assim nem o inferior em si mesmo se sobrepõe, nem somos incomodados pela superioridade que nos vemos… (em tantas coisas os outros são melhores do que eu, bem, e então?).
A humildade que Jesus nos propõe levou-o a dificultar a sua vida pelos outros, a defender os humilhados, a tomar o seu lado, a estar no seu “nível” (ou talvez humilde).
A verdade é que somos convidados por todo lado para sermos o primeiro, o mais bonito, o mais elegante, o mais famoso, aquele que aparece mais nos meios de comunicação social, aquele que obtém a primeira posição, aquele que ganha os exames competitivos, aquele que ganha mais dinheiro, aquele que tem o melhor apartamento, aquele que é “amigo de” e “conhece” e… Mas não há provas de que tudo isto nos torna mais felizes: muitas vezes faz de nós escravos e obcecados pela opinião dos outros, e não raro frustrados quando não somos bem sucedidos.
Um segundo aviso ou convite contra a corrente é: FALTA DE INTERESSE. Quanto nos custa fazer as coisas desinteressadamente! Quase sempre esperamos uma resposta, que nos correspondam de alguma forma, que nos paguem; e muitas vezes buscamos nosso interesse acima do interesse dos outros. Às vezes até fazemos o bem para “nos senti bem”, e não por convicção ou responsabilidade.
Bem, aí temos o estilo diferente de Jesus:
Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa.
Ou seja: investir a um custo irrecuperável; dar e dar… porque é assim que o teu Deus Pai é e age e quer que sejas como ele. Faça-o desta forma porque é urgente mudar este mundo de interesses, no qual as coisas são feitas para obter algo em troca.
A Eucaristia foi sempre considerada o “banquete do Senhor”, a ceia festiva dos irmãos. Uma mesa em que nunca temos direitos ou méritos suficientes para estarmos sentados. Como diz aquela oração antes da comunhão: “NÃO SOU DIGNO DE QUE ENTREIS EM MINHA CASA“. Mas sem o merecer, sem ter o direito de estar nesta mesa, sendo um pecador… o Senhor continuamente me convida … a fazer o mesmo. Para fazer da nossa vida, das nossas relações, do nosso coração uma mesa universal aberta a todos… e especialmente aos menos merecedores. Porque “merecer”… é algo que Deus removeu do seu dicionário…. e do nosso.
Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf
Fonte: Missionários Claretianos (Ciudad Redonda)