QUARTA-FEIRA DE CINZAS – (ANO A)

A PALAVRA

Iniciamos hoje a Quaresma, que é tempo de escuta da Palavra, de oração, de jejum, e da prática da caridade como caminho de conversão, tendo como horizonte a celebração do Mistério Pascal de nosso Senhor Jesus Cristo, queremos com Jesus realizar nossa passagem da morte para a vida plena. Este tempo de graça e reconciliação se inicia com a celebração das Cinzas: apelo para a conversão e convite à revisão de nossas atitudes.

Durante a Quaresma, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil promove a Campanha da Fraternidade, cuja finalidade é ajudar-nos a assumir a dimensão pessoal, comunitária e social da Quaresma. Neste ano, o tema é “FRATERNIDADE E FOME”. E o lema, “DAI-LHES VÓS MESMOS DE COMER” (Mt 14,16).

Ao longo da caminhada quaresmal, em que a conversão se faz meta primeira, somos convidados a sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentarem o flagelo da fome, sofrido por uma multidão de irmãos e irmãs, por meio de compromissos que transformem esta realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo. 

Leituras

12 “Agora, diz o Senhor,
voltai para mim com todo o vosso coração,
com jejuns, lágrimas e gemidos;
13 rasgai o coração, e não as vestes;
e voltai para o Senhor, vosso Deus;
ele é benigno e compassivo,
paciente e cheio de misericórdia,
inclinado a perdoar o castigo”.
14 Quem sabe, 
se ele se volta para vós e vos perdoa,
e deixa atrás de si a bênção,
oblação e libação
para o Senhor, vosso Deus?
15 Tocai trombeta em Sião,
prescrevei o jejum sagrado,
convocai a assembleia;
16 congregai o povo,
realizai cerimônias de culto,
reuni anciãos,
ajuntai crianças e lactentes;
deixe o esposo seu aposento,
e a esposa, seu leito.
17 Chorem, postos entre o vestíbulo e o altar,
os ministros sagrados do Senhor, e digam:
“Perdoa, Senhor, a teu povo,
e não deixes que esta tua herança sofra infâmia
e que as nações a dominem”.
Por que se haveria de dizer entre os povos:
“Onde está o Deus deles?”
18 Então o Senhor encheu-se de zelo por sua terra
e perdoou ao seu povo.
Palavra do Senhor.

R. Misericórdia, ó Senhor, pois pecamos.

3 Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia! *
Na imensidão de vosso amor, purificai-me!
4 Lavai-me todo inteiro do pecado, *
e apagai completamente a minha culpa! R.

5 Eu reconheço toda a minha iniquidade, *
o meu pecado está sempre à minha frente.
6a Foi contra vós, só contra vós, que eu pequei, *
pratiquei o que é mau aos vossos olhos! R.

12 Criai em mim um coração que seja puro, *
dai-me de novo um espírito decidido.
13 Ó Senhor, não me afasteis de vossa face, *
nem retireis de mim o vosso Santo Espírito! R.

14 Dai-me de novo a alegria de ser salvo *
e confirmai-me com espírito generoso!
17 Abri meus lábios, ó Senhor, para cantar, *
e minha boca anunciará vosso louvor! R.

Irmãos,
20 somos embaixadores de Cristo,
e é Deus mesmo que exorta através de nós.
Em nome de Cristo, nós vos suplicamos:
deixai-vos reconciliar com Deus.
21 Aquele que não cometeu nenhum pecado,
Deus o fez pecado por nós,
para que nele nós nos tornemos justiça de Deus.
6,1 Como colaboradores de Cristo,
nós vos exortamos a não 
receberdes em vão a graça de Deus,
2 pois ele diz: 
“No momento favorável, eu te ouvi
e no dia da salvação, eu te socorri”.
É agora o momento favorável,
é agora o dia da salvação.
Palavra do Senhor.
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
1 “Ficai atentos
para não praticar a vossa justiça na frente dos homens,
só para serdes vistos por eles.
Caso contrário, não recebereis a recompensa
do vosso Pai que está nos céus.
2 Por isso, quando deres esmola,
não toques a trombeta diante de ti,
como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas,
para serem elogiados pelos homens.
Em verdade vos digo:
eles já receberam a sua recompensa.
3 Ao contrário, quando deres esmola,
que a tua mão esquerda não saiba
o que faz a tua mão direita,
4 de modo que, a tua esmola fique oculta.
E o teu Pai, que vê o que está oculto,
te dará a recompensa.
5 Quando orardes,
não sejais como os hipócritas,
que gostam de rezar em pé,
nas sinagogas e nas esquinas das praças,
para serem vistos pelos homens.
Em verdade vos digo:
eles já receberam a sua recompensa.
6 Ao contrário, quando tu orares,
entra no teu quarto, fecha a porta,
e reza ao teu Pai que está oculto.
E o teu Pai, que vê o que está escondido,
te dará a recompensa.
16 Quando jejuardes,
não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas.
Eles desfiguram o rosto,
para que os homens vejam que estão jejuando.
Em verdade vos digo:
Eles já receberam a sua recompensa.
17 Tu, porém, quando jejuares,
perfuma a cabeça e lava o rosto,
18 para que os homens não vejam
que tu estás jejuando,
mas somente teu Pai, que está oculto.
E o teu Pai, que vê o que está escondido,
te dará a recompensa”.
Palavra da Salvação.

Reflexão

CONVERTEI-VOS A MIM

Principiamos o caminho da Quaresma, que se abre com as palavras do profeta Joel indicando-nos a direção a tomar. Trata-se dum convite que brota do coração de Deus, suplicando-nos de braços abertos e olhos cheios de nostalgia: «Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Convertei-vos a Mim. A Quaresma é uma viagem de regresso a Deus. Quantas vezes, atarefados ou indiferentes, Lhe dissemos: «Senhor, espera! Virei encontrar-Vos mais tarde… Hoje não posso, mas amanhã começarei a rezar e a fazer algo pelos outros». E assim dia após dia… Agora Deus lança um apelo ao nosso coração. Na vida, sempre teremos coisas a fazer e desculpas a apresentar, mas, irmãos e irmãs, hoje é o tempo de regressar a Deus.

CONVERTEI-VOS A MIM – diz Ele – de todo o vosso coração. A Quaresma é uma viagem que envolve toda a nossa vida, tudo de nós mesmos. É o tempo para verificar as estradas que estamos a percorrer, para encontrar o caminho que nos leva de volta a casa, para redescobrir o vínculo fundamental com Deus, do qual tudo depende. A Quaresma não é compor um ramalhete espiritual; é discernir para onde está orientado o coração. Aqui está o centro da Quaresma: para onde está orientado o meu coração? Tentemos saber: Para onde me leva o «navegador» da minha vida, para Deus ou para mim mesmo? Vivo para agradar ao Senhor, ou para ser notado, louvado, preferido, no primeiro lugar e assim por diante? Tenho um coração «dançarino» que dá um passo para a frente e outro para trás, amando ora o Senhor ora o mundo, ou um coração firme em Deus? Sinto-me bem com as minhas hipocrisias ou luto para libertar o coração da simulação e das falsidades que o têm prisioneiro?

A viagem da Quaresma é um êxodo: é um êxodo da escravidão para a liberdade. São quarenta dias que recordam os quarenta anos em que o povo de Deus caminhou pelo deserto para voltar à terra de origem. Mas, como foi difícil deixar o Egito! Mais difícil do que deixar a terra foi tirar o Egito do coração do povo de Deus, aquele Egito que traziam dentro… É muito difícil deixar o Egito! Ao longo do caminho, nos seus lamentos, sempre se sentiam tentados pelas cebolas, tentados a voltar para trás, presos às memórias do passado, a qualquer ídolo. O mesmo se passa conosco: a viagem de regresso a Deus vê-se dificultada pelos nossos apegos doentios, impedida pelos laços sedutores dos vícios, pelas falsas seguranças do dinheiro e da ostentação, pela lamúria que paralisa. Para caminhar, é preciso desmascarar estas ilusões.

Interroguemo-nos então: Como avançar no caminho para Deus? Ajudam-nos as viagens de regresso narradas pela Palavra de Deus.

Olhamos para o filho pródigo e compreendemos que é tempo também para nós de regressar ao Pai. Como aquele filho, também nós esquecemos o ar de casa, delapidamos bens preciosos em troca de coisas sem valor e ficamos com as mãos vazias e o coração insatisfeito. Caímos: somos filhos que caem continuamente, somos como criancinhas que tentam andar, mas estatelam-se no chão precisando uma vez e outra de ser levantadas pelo papá. É o perdão do Pai que sempre nos coloca de pé: o perdão de Deus, a Confissão, é o primeiro passo da nossa vigem de regresso. Ao dizer Confissão, recomendo aos confessores: Sede como o pai, não com o chicote, mas com o abraço.

Depois precisamos de regressar a Jesus, fazer como aquele leproso curado que voltou para Lhe agradecer. Curados foram dez, mas só ele foi também salvo, porque voltara para Jesus (cf. Lc 17, 12-19). Todos, todos nós temos enfermidades espirituais: sozinhos, não podemos curá-las; todos temos vícios arraigados: sozinhos, não podemos extirpá-los; todos temos medos que nos paralisam: sozinhos, não podemos vencê-los. Precisamos de imitar aquele leproso, que voltou para Jesus e se prostrou aos seus pés. Temos necessidade da cura de Jesus, precisamos de colocar diante d’Ele as nossas feridas e dizer-Lhe: «Jesus, estou aqui diante de Vós, com o meu pecado, com as minhas misérias. Vós sois o médico; podeis libertar-me. Curai o meu coração».

Mais ainda! A palavra de Deus pede-nos para regressar ao Pai, pede-nos para voltar a Jesus, e somos chamados também a REGRESSAR AO ESPÍRITO SANTO. As cinzas na cabeça lembram-nos que somos pó e em pó nos havemos de tornar. Mas, sobre este pó que somos nós, Deus soprou o seu Espírito de vida. Então não podemos viver seguindo o pó, indo atrás de coisas que hoje existem e amanhã desaparecem. Voltemos ao Espírito, Dador de vida! Voltemos ao Fogo que faz ressurgir as nossas cinzas, àquele Fogo que nos ensina a amar. Continuaremos sempre a ser pó, mas – como diz um hino litúrgico – pó enamorado. Voltemos a rezar ao Espírito Santo, redescubramos o fogo do louvor, que queima as cinzas das lamúrias e da resignação.

Irmãos e irmãs, esta nossa viagem de regresso a Deus só é possível, porque houve a sua vinda até junto de nós. Caso contrário, não teria sido possível. Antes de irmos até Ele, desceu Ele até nós. Precedeu-nos, veio ao nosso encontro. Por nós, desceu até mais fundo de quanto pudéssemos imaginar: fez-Se pecado, fez-Se morte. Isto mesmo no-lo recordou São Paulo: «Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus O fez pecado por nós» (2 Cor 5, 21). Para não nos deixar sozinhos e acompanhar-nos no caminho, Ele desceu dentro do nosso pecado e da nossa morte. Tocou o pecado, tocou a nossa morte. Então a nossa viagem é deixar-se tomar pela mão. O Pai que nos chama a voltar é Aquele que sai de casa e vem procurar-nos; o Senhor que nos cura é Aquele que Se deixou ferir na cruz; o Espírito que nos faz mudar de vida é Aquele que sopra com força e suavidade sobre o nosso pó.

Daí a súplica do Apóstolo: «Deixai-vos reconciliar com Deus» (2 Cor 5, 20). Deixai-vos reconciliar: o caminho não se apoia nas nossas forças; com as próprias forças, ninguém pode reconciliar-se com Deus; não consegue. A conversão do coração, com os gestos e práticas que a exprimem, só é possível se partir do primado da ação de Deus. O que nos faz regressar a Ele não são as nossas capacidades nem os méritos que ostentamos, mas a sua graça que temos de acolher. Salva-nos a graça. A salvação é pura graça, pura gratuidade. Disse-o claramente Jesus no Evangelho: o que nos torna justos não é a justiça que praticamos diante dos homens, mas a relação sincera com o Pai. O início do regresso a Deus é reconhecermo-nos necessitados d’Ele, necessitados de misericórdia, necessitados da sua graça. O caminho certo é este: o caminho da humildade. Como me sinto eu: necessitado ou autossuficiente?

Hoje inclinamos a cabeça para receber as cinzas. No termo da Quaresma, abaixar-nos-emos ainda mais para lavar os pés dos irmãos. A Quaresma é uma descida humilde dentro de nós e rumo aos outros. É compreender que a salvação não é uma escalada para a glória, mas um abaixamento por amor. É fazer-nos humildes. Neste caminho, para não perder o rumo, coloquemo-nos diante da cruz de Jesus: é a cátedra silenciosa de Deus. Contemplemos cada dia as suas chagas, as chagas que Ele levou para o Céu e todos os dias, na sua oração de intercessão, faz ver ao Pai. Contemplemos cada dia as suas chagas. Naqueles buracos, reconheçamos o nosso vazio, as nossas faltas, as feridas do pecado, os golpes que nos fizeram sofrer. E contudo, mesmo ali, vemos que Deus não aponta o dedo contra nós, mas abre-nos os braços. As suas chagas estão abertas para nós e, por aquelas chagas, fomos curados (cf. 1 Ped 2, 24; Is 53, 5). Beijemo-las e compreenderemos que precisamente lá, nos buracos mais dolorosos da vida, Deus nos espera com a sua infinita misericórdia. Porque ali, onde somos mais vulneráveis, onde mais nos envergonhamos, Ele veio ao nosso encontro. E agora que veio ter conosco, convida-nos a regressar a Ele, para voltarmos a encontrar a alegria de ser amados.

Texto: PAPA FRANCISCO