Para navegar em alto mar, convém contar com uma bússola, que garanta as coordenadas essenciais para ao menos não se perder o rumo.
Para mergulhar no mistério muito mais profundo da paixão e da ressurreição de Cristo, necessitamos de guia seguro, que nos ajude a perceber o sentido de acontecimentos tão carregados de complexidade humana e tão envolvidos na densa trama da relação entre Deus e a humanidade, em função da qual Cristo empenhou por inteiro sua vida e sua missão.
Para refletir sobre Cristo convém conferir de perto o que dizem os Evangelhos, e manter-nos na perspectiva que eles nos oferecem. Tanto a propósito da paixão, como da ressurreição. Pois temos aí uma primeira insistência dos Evangelhos: a paixão de Cristo é colocada sempre na perspectiva de sua ressurreição.
Parece-me que hoje em dia precisamos nos vacinar contra duas obsessões equivocadas, que rondam a interpretação da paixão de Cristo e a compreensão de sua ressurreição. No que se refere à paixão, a obsessão de ressaltar a atrocidade do sofrimento, desvinculando-o do contexto maior de suas causas e da motivação com que foi assumido por Cristo. E a propósito da ressurreição, a insistência demasiada em contar com a demonstração visível da presença do Ressuscitado.
A respeito dos sofrimentos, os Evangelhos são muito discretos na descrição do martírio de Cristo, ressaltando, por outro lado, com muita clareza, sua postura serena e consciente diante de tudo o que lhe estava acontecendo. Desta maneira, para os Evangelhos, o sofrimento não é capítulo principal. Eles centram sua atenção no testemunho de amor e de misericórdia que o Cristo transmite, e que fica, isto sim, engrandecido pela maneira como suporta os sofrimentos.
No que se refere às narrativas da ressurreição, é preciso ter presente a grande discrição das manifestações do Ressuscitado. Os Evangelhos não testemunham nem a facilidade de Jesus se mostrar, nem a obsessão dos discípulos em verem o Ressuscitado.
Estas duas perspectivas ajudam a perceber a coerência do Evangelho, e são importantes para a sua correta interpretação.
Diante da curiosidade despertada pelo filme de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo, e diante de legítimas ansiedades de ordem pastoral, seria muito conveniente uma releitura dos Evangelhos, conjugando ambas as perspectivas, tanto a propósito da discrição na narrativa dos sofrimentos, como na discrição das aparições do Ressuscitado.
Em primeiro lugar, o Evangelho mostra Cristo bem consciente e muito livre diante da paixão que o aguardava, mas que ele nunca dissociava de sua ressurreição. “Ninguém me tira a vida, mas eu a dou livremente. Eu tenho o poder de dá-la, e tenho o poder de retomá-la. Tal o mandamento que recebi do Pai.” (Jo 10,18).
Toda paixão precisa ser vista à luz desta liberdade consciente de Cristo, e de sua obediência a um desígnio maior, que comportava a morte na perspectiva de um desfecho superior. O sofrimento não era o ponto de chegada, não servia de justificativa ou de motivação. Era trânsito, não era destino.
O Evangelho mostra também como esta postura de Cristo interpelava as atitudes de todos os que o faziam sofrer. Ao soldado que lhe dera um bofetão, Cristo adverte com dignidade e serenidade: “Se falei mal, mostra em que falei mal; e se falei certo, por que me bates?” (Jo 18, 23). Com estas palavras, Jesus questiona todos os seus algozes, reprovando suas atitudes. Aplicadas a Pilatos, as palavras significariam: “se sou inocente, por que me condenas?”.
Jesus questiona o castigo que lhe impingem injustamente. Não aprova o sadismo. Não justifica a crueldade. Não legitima a tortura. Tudo isto caiu sobre ele. Mas tudo ficou reprovado por sua postura, e ultrapassado pelo magnífico testemunho da sua compaixão pela fraqueza humana e do seu perdão divino: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
Este testemunho se completa pela maneira como o Ressuscitado se mostrou. Ele não fez, de modo algum, de sua ressurreição uma vingança contra seus algozes. Ele foi muito discreto em suas aparições, e não incentivou nenhuma vontade de vê-lo em sua forma humana, como poderemos constatar numa próxima reflexão sobre este tema tão fecundo e desafiador.
Fica assim mais do que ressaltado que a vingança não faz parte dos planos de Deus, e não pode, em conseqüência, fazer parte de nenhuma interpretação teológica da redenção. Ao contrário, a paixão de Cristo testemunha a infinita misericórdia do Pai, a serviço da qual Jesus empenhou toda a sua vida.
Texto: DOM DEMÉTRIO VALENTINI
Imagem: PIXABAY
Fonte: CNBB