A liturgia de hoje nos fala (outra vez) de um Deus que ama e cujo amor nos desafia a ultrapassar as nossas escravidões para chegar à vida nova, à ressurreição.
A primeira leitura (Is 43,16-21) apresenta-nos o Deus libertador, que acompanha com solicitude e amor a caminhada do seu Povo para a liberdade. Esse “CAMINHO” é o paradigma dessa outra libertação que Deus nos convida a fazer neste tempo de Quaresma e que nos levará à Terra Prometida onde corre a vida nova.
A segunda leitura (Fl 3,8-14) é um desafio a libertar-nos do “lixo” que impede a descoberta do fundamental: a comunhão com Cristo, a identificação com Cristo, princípio da nossa ressurreição.
O Evangelho (Jo 8,1-11) diz-nos que, na perspectiva de Deus, não são o castigo e a intolerância que resolvem o problema do mal e do pecado; só o amor e a misericórdia geram ativamente vida e fazem nascer o homem novo. É esta lógica – a lógica de Deus – que somos convidados a assumir na nossa relação com os irmãos.
Leituras
A vida cristã é uma caminhada permanente, rumo à Páscoa, rumo à ressurreição. Neste tempo de Quaresma, somos convidados a deixar definitivamente para trás o passado e a aderir à vida nova que Deus nos propõe. Cada Quaresma é um abalo que nos desinstala, que põe em causa o nosso comodismo, que nos convida a olhar para o futuro e a ir além de nós mesmos, na busca do Homem Novo. O que é que, na minha vida, necessita de ser transformado? O que é que ainda me mantém alienado, prisioneiro e escravo? O que é que me impede de imprimir à minha vida um novo dinamismo,
de forma que o Homem Novo se manifeste em mim?
16Isto diz o Senhor,
que abriu uma passagem no mar
e um caminho entre águas impetuosas;
17que pôs a perder carros e cavalos,
tropas e homens corajosos;
pois estão todos mortos e não ressuscitarão,
foram abafados como mecha de pano e apagaram-se:
18‘Não relembreis coisas passadas,
não olheis para fatos antigos.
19Eis que eu farei coisas novas,
e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis?
Pois abrirei uma estrada no deserto
e farei correr rios na terra seca.
20H]ao de glorificar-me os animais selvagens,
os dragões e os avestruzes,
porque fiz brotar água no deserto
e rios na terra seca
para dar de beber a meu povo, a meus escolhidos.
21Este povo, eu o criei para mim
e ele cantará meus louvores.
Palavra do Senhor.
R. Maravilhas fez conosco o Senhor,
exultemos de alegria!
1Quando o Senhor reconduziu nossos cativos,*
parecíamos sonhar;
2aencheu-se de sorriso nossa boca,*
2bnossos lábios, de canções.R.
2cEntre os gentios se dizia: ‘Maravilhas*
2dfez com eles o Senhor!’
3Sim, maravilhas fez conosco o Senhor,*
exultemos de alegria!R.
4Mudai a nossa sorte, ó Senhor,*
como torrentes no deserto.
5Os que lançam as sementes entre lágrimas,*
ceifarão com alegria.R.
6Chorando de tristeza sairão,*
espalhando suas sementes;
cantando de alegria voltarão,*
carregando os seus feixes!R.
Neste tempo favorável à conversão, é importante revermos aquilo que dá sentido à nossa vida. É possível que detectemos no centro dos nossos interesses algum desse “lixo” de que Paulo fala (interesses materiais e egoístas, preocupações com honras ou com títulos humanos, apostas incondicionais em pessoas ou ideologias…); mas Paulo convida a dar prioridade ao que é importante – a uma vida de comunhão com Cristo, que nos leve a uma identificação com o seu amor, o seu serviço, a sua entrega. Qual é o “LIXO” que me impede de nascer, com Cristo, para a vida nova?
Irmãos:
8Na verdade, considero tudo como perda
diante da vantagem suprema
que consiste em conhecer a Cristo Jesus, meu Senhor.
Por causa dele eu perdi tudo.
Considero tudo como lixo,
para ganhar Cristo e ser encontrado unido a ele,
9não com minha justiça provindo da Lei,
mas com a justiça por meio da fé em Cristo,
a justiça que vem de Deus, na base da fé.
10Esta consiste em conhecer a Cristo,
experimentar a força da sua ressurreição,
ficar em comunhão com os seus sofrimentos,
tornando-me semelhante a ele na sua morte,
11para ver se alcanço a ressurreição dentre os mortos.
12Não que já tenha recebido tudo isso,
ou que já seja perfeito.
Mas corro para alcançá-lo,
visto que já fui alcançado por Cristo Jesus.
13Irmãos, eu não julgo já tê-lo alcançado.
Uma coisa, porém, eu faço:
esquecendo o que fica para trás,
eu me lanço para o que está na frente.
14Corro direto para a meta,
rumo ao prêmio,
que, do alto, Deus me chama a receber
em Cristo Jesus.
Palavra do Senhor.
O nosso Deus – diz de forma clara o Evangelho de hoje – funciona na lógica da misericórdia e não na lógica da Lei; Ele não quer a morte daquele que errou, mas a libertação plena do homem. Nesta lógica, só a misericórdia e o amor se encaixam: só eles são capazes de mostrar o sem sentido da escravidão e de soprar a esperança, a ânsia de superação, o desejo de uma vida nova. A força de Deus (essa força que nos projeta para a vida em plenitude) não está no castigo, mas está no amor.
Naquele tempo:
1Jesus foi para o monte das Oliveiras.
2De madrugada, voltou de novo ao Templo.
Todo o povo se reuniu em volta dele.
Sentando-se, começou a ensiná-los.
3Entretanto, os mestres da Lei e os fariseus
trouxeram uma mulher surpreendida em adultério.
Colocando-a no meio deles,
4disseram a Jesus: ‘Mestre,
esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
5Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres.
Que dizes tu?’
6Perguntavam isso para experimentar Jesus
e para terem motivo de o acusar.
Mas Jesus, inclinando-se,
começou a escrever com o dedo no chão.
7Como persistissem em interrogá-lo,
Jesus ergueu-se e disse:
‘Quem dentre vós não tiver pecado,
seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.’
8E tornando a inclinar-se,
continuou a escrever no chão.
9E eles, ouvindo o que Jesus falou,
foram saindo um a um,
a começar pelos mais velhos;
e Jesus ficou sozinho,
com a mulher que estava lá, no meio do povo.
10Então Jesus se levantou e disse:
‘Mulher, onde estão eles?
Ninguém te condenou ?’
11Ela respondeu: ‘Ninguém, Senhor.’
Então Jesus lhe disse:’Eu também não te condeno.
Podes ir, e de agora em diante não peques mais.’
Palavra da Salvação.
Fonte: Liturgia Diária – CNBB
Reflexão
O PERDÃO QUE NÃO CONDENA, RECONSTRÓI.
Os letrados e os fariseus eram considerados (pelo povo e por eles próprios) responsáveis pela moralidade pública. Estudavam e conheciam de cor as regras, os critérios morais, os comportamentos inaceitáveis, o que as autoridades religiosas ditavam. Falavam mesmo “em nome de Deus“, cuja vontade conheciam perfeitamente posto que se baseavam nas regras oficiais. Tinham a intenção de pôr fim à corrupção social e religiosa. Não foi um mau objetivo. E andavam “na caça” para apanhar, denunciar e condenar. É claro que tentaram certificar-se de que as sentenças eram aplicadas por outros. Mantiveram as suas mãos “limpas” e a sua consciência limpa, tendo conseguido reduzir a imoralidade e o pecado.
Na cena atual, a mulher não desempenha realmente um grande papel. O objetivo é Jesus. O fato é que Moisés ordenou que os adúlteros fossem apedrejados. O homem e a mulher: onde está ele?
Quando a lei/norma é colocada ao lado de um pecado específico, a sentença adquire rigor matemático. Porém as coisas mudam quando uma pessoa específica é colocada ao lado da lei. Isto raramente é feito. Algumas pessoas preferem “livrar-se” da pessoa em vez de questionar a lei, ou perguntar se ela é justa. Acham impensável a suspeita de que talvez a lei não deva ser aplicada tal como a entende. Eles estão dispostos a “atirar pedras“.
Esta gente que rodeia Jesus, “armada” com uma mulher que “apanharam” pecando, se sente representante da instituição judaica e do próprio Deus, e tentam montar uma armadilha para Ele: para ver se Ele ousa dizer algo contra “o que está escrito“, contra as suas leis sagradas (isto é, as de Deus). Vamos ver se ele vai parar de falar de “misericórdia” e compreensão em nome de Deus. Nada de ter mãos brandas com os fracos e pecadores. Devemos cumprir o que Moisés ordenou.
Tudo está posto: o crime óbvio, as testemunhas, as pedras nas mãos e a Lei que mandou matar. Jesus: “TU O QUE DIZES?”.
Mas Jesus não diz, ele “FAZ“. E a primeira coisa que ele faz é ficar calado, dar tempo ao silêncio, esperar. Ele dá aos acusadores a oportunidade de ver se são capazes de olhar para a situação de forma diferente, com calma, com olhos diferentes, para ver se alguém tem algo “novo” para contribuir. Mas é inútil. Tudo está muito claro; eles têm a certeza de que estão certos. Para eles não há outro caminho. Eles são um exemplo desse ditado: “Sabes muito bem onde procurar: é por isso que não consegues encontrar Deus“. Porque Deus é imprevisível, original, surpreendente. Se você crê que compreendes, é um sinal de que não compreendes nada. Mas esta mentalidade educada, dependente de preceitos, regras, leis, definições, julgamentos e condenações… tem como resultado ser impossível mudar. Eles não sabem nada de Deus. Fazem Deus à sua própria imagem. Precisamente aquilo que está tão proibido no primeiro e mais importante mandamento: FAZER IMAGENS DE DEUS (Êxodo 20, 2-5).
O Mestre pede a todos os senhores com vocação de juízes que parem de acusar, de não olhar sempre para os outros de cima, que se coloquem ao nível de todos, que tentem experimentar de alguma forma a fraqueza dos outros, e que se lembrem das suas próprias inconsistências e pecados. Ele próprio escolheu entrar no nosso mundo ao “DESCER“, ao colocar-se ao nosso nível, até ao ponto de morrer numa cruz. É por isso que, talvez, perante estes senhores “tão elevados”, tão arrogantes, tão intransigentes, tão orgulhosos da sua verdade em sua cátedra, Ele se abaixa, atira-se ao chão, onde a mulher está deitada. Coitado daquele que não se lembra disto: mais cedo ou mais tarde acabará por atirar pedras! Ele que se esquece dos seus próprios pecados e da misericórdia que lhe foi demonstrada, ao final não será capaz de resistir à tentação de apedrejar qualquer pecador que se apresente perante ele.
O diálogo final entre Jesus e a mulher tem uma ternura especial. Ela precisa, acima de tudo, de ser reconstruída: Ela está destroçada. Ela ainda não abriu a boca. E esta é a tarefa que o Senhor assume. Como podemos recordar das palavras de Isaías que ouvimos hoje: “Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos“. O importante não é o passado, mas o que tem de brotar, o novo. Ela precisa de um CAMINHO NO SEU DESERTO, um rio na sua vida seca.
Como é que ela se meteu numa situação tão lamentável? O que aconteceu na sua vida de casal que teve de procurar afeto noutro lugar? O que ganhamos ao apedrejá-la? O que deveria importar para eles e para nós é que ela se refaça, que se encontre, que se torne uma nova pessoa…
Viste aqui a “penitência” que Jesus põe ante o pecado que é óbvio? Viste como ele repreende a mulher? Viste as condições que ele estabelece para perdoá-la? Recorda da parábola do domingo passado: Será que aquele pai “repreendeu” o filho pródigo, desobediente e louco? Recordas que ele disse: “Terás de demonstrar que estás arrependido?”. Até o defende perante o julgamento objetivo e implacável do seu irmão. O seu perdão é incondicional, um “presente”, que é o que significa “per-don”, um grande presente imerecido.
Quando Deus encontra o pecado, Ele está preocupado apenas com uma coisa: O que fazemos para superá-lo? Como o superamos? Não importa o que aconteceu, o que nós fizemos: “Nem eu vos condeno“. O que ele procura é fazer com que surja algo novo dentro de nós. Porque a pior situação é o desespero, sentir-se “mal”, vencido, humilhado, derrotado. Desta forma, não há progresso espiritual, não há revitalização cristã ou eclesial, não há salvação. E o homem/mulher está perdido.
Precisamos ouvir a voz que Deus nos quer dirigir quando pecamos: precisamos de nos sentir novos, de ter o caminho aberto. Precisamos ouvir muitas vezes dos seus lábios: “Nem eu vos condeno, ide e não pequeis mais“, e todas as pedras vão cair das nossas mãos.
Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf
Fonte: Ciudad Redonda