A liturgia do IV Domingo do Tempo Comum garante-nos que Deus não se conforma com os projetos de egoísmo e de morte que desfeiam o mundo e que escravizam os homens e afirma que Ele encontra formas de vir ao encontro dos seus filhos para lhes propor um projeto de liberdade e de vida plena.
A primeira leitura (Dt 18,15-20) propõe-nos – a partir da figura de Moisés – uma reflexão sobre a experiência profética. O profeta é alguém que Deus ESCOLHE, que Deus chama e que Deus envia para ser a sua “PALAVRA” viva no meio dos homens. Através dos profetas, Deus vem ao encontro dos homens e apresenta-lhes, de forma bem perceptível, as suas propostas.
O Evangelho (Mc 1,21-28) mostra como Jesus, o Filho de Deus, cumprindo o projeto libertador do Pai, pela sua Palavra e pela sua ação, RENOVA e TRANSFORMA em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.
A segunda leitura (1Cor 7,32-35) CONVIDA os crentes a repensarem as suas prioridades e a não deixarem que as realidades transitórias sejam impeditivas de um verdadeiro compromisso com o serviço de Deus e dos irmãos.
Leituras
Moisés falou ao povo dizendo:
15O Senhor teu Deus fará surgir para ti,
da tua nação e do meio de teus irmãos,
um profeta como eu:
a ele deverás escutar.
16Foi exatamente o que pediste ao Senhor teu Deus,
no monte Horeb,
quando todo o povo estava reunido, dizendo:
‘Não quero mais escutar a voz do Senhor meu Deus,
nem ver este grande fogo, para não acabar morrendo’.
17Então o Senhor me disse:
‘Está bem o que disseram.
18Farei surgir para eles, do meio de seus irmãos,
um profeta semelhante a ti.
Porei em sua boca as minhas palavras
e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar.
19Eu mesmo pedirei contas
a quem não escutar as minhas palavras
que ele pronunciar em meu nome.
20Mas o profeta que tiver a ousadia
de dizer em meu nome alguma coisa
que não lhe mandei ou se falar em nome de outros
deuses, esse profeta deverá morrer’.
Palavra do Senhor.
1Vinde, exultemos de alegria no Senhor,*
aclamemos o Rochedo que nos salva!
2Ao seu encontro caminhemos com louvores,*
e com cantos de alegria o celebremos!R.
6Vinde adoremos e prostremo-nos por terra,*
e ajoelhemos ante o Deus que nos criou!
7Porque ele é o nosso Deus, nosso Pastor,
e nós somos o seu povo e seu rebanho,*
as ovelhas que conduz com sua mão.R.
8Oxalá ouvísseis hoje a sua voz:*
‘Não fecheis os corações como em Meriba,
9como em Massa, no deserto, aquele dia,
em que outrora vossos pais me provocaram,*
apesar de terem visto as minhas obras’.R.
Irmãos:
32Eu gostaria que estivésseis livres de preocupações.
O homem não casado é solícito pelas coisas do Senhor
e procura agradar ao Senhor.
33O casado preocupa-se com as coisas do mundo
e procura agradar à sua mulher
34e, assim, está dividido.
Do mesmo modo, a mulher não casada e a jovem solteira
têm zelo pelas coisas do Senhor
e procuram ser santas de corpo e espírito.
Mas a que se casou preocupa-se com as coisas do mundo
e procura agradar ao seu marido.
35Digo isto para o vosso próprio bem
e não para vos armar um laço.
O que eu desejo é levar-vos ao que é melhor,
permanecendo junto ao Senhor, sem outras preocupações.
Palavra do Senhor.
21Estando com seus discípulos em Cafarnaum,
Jesus, num dia de sábado,
entrou na sinagoga e começou a ensinar.
22Todos ficavam admirados com o seu ensinamento,
pois ensinava como quem tem autoridade,
não como os mestres da Lei.
23Estava então na sinagoga
um homem possuído por um espírito mau.
Ele gritou:
24‘Que queres de nós, Jesus Nazareno?
Vieste para nos destruir?
Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus’.
25Jesus o intimou: ‘Cala-te e sai dele!’
26Então o espírito mau sacudiu o homem com violência,
deu um grande grito e saíu.
27E todos ficaram muito espantados
e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto?
Um ensinamento novo dado com autoridade:
Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!’
28E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte,
em toda a região da Galiléia.
Palavra da Salvação.
Fonte: Liturgia Diária – CNBB
Reflexão
CONTRA OS DEMÔNIOS
Depois da chamada dos primeiros quatro discípulos (cf. Marcos 1,16-20), Jesus fixa sua residência em Cafarnaum, que se converte em algo como o seu “quartel de operações”. É hóspede da família de Pedro, proprietário de uma casa à beira do lago, a poucos passos da sinagoga.
Diferente de outros evangelistas, Marcos escolhe com muito cuidado uma cura para contar do começo a tarefa evangelizadora de Jesus. Quer assim sublinhar que toda a atividade e pregação de Jesus têm um único fim: a SALVAÇÃO/CURA/LIBERTAÇÃO/FELICIDADE do homem.
É sábado e as pessoas vão à sinagoga para rezar e escutar as leituras e a explicação da palavra de Deus. É um rabino quem costuma organizar o encontro, porém todo judeu adulto pode ser convidado ou se oferecer para ler e comentar as Escrituras. Fazer a homilia costumava ser bastante simples: bastava se referir às explicações dadas pelos grandes rabinos sobre o texto bíblico proclamado. Atrever-se a fazer interpretações pessoais, e sair do que sempre se ensinou, era, quando menos, arriscado, porque tal comentarista poderia ser acusado de ser presunçoso.
Jesus vai como um membro do povo, e se oferece para as leituras. A primeira costuma ser do livro da Lei, isto é dos primeiros cinco da Bíblia; a outra é uma passagem dos profetas. Quem lê a segunda leitura, pode também fazer a homilia. Jesus, aproveitando do clima de recolhimento e de oração que se criou, aproveita para apresentar sua mensagem. Mas não se limita a repetir o que foi dito antes, mais faz um comentário livre e original do texto sagrado.
“NÃO ENSINAVA COMO OS LETRADOS”. Os letrados eram os Mestres da Lei, especialistas que interpretavam e aplicavam as Escrituras, as verdades, as muitas normas que faziam parte da tradição religiosa (mandamentos, proibições…) e impunham-nas às pessoas. Insistiam bastante nas “obrigações religiosas” como chave para estar em ordem com Deus, e todas as condições e ritos necessários para ser “puros”. Seu modo de fazer discursos era multiplicar as citações de outras personagens anteriores que tivessem alguma autoridade, outros rabinos e mestres, escolas espirituais… Porém lhes faltava “vida”: eles ficavam fora do que diziam, só transmitiam o que pensavam… Sim, enchiam-se de citações, referências, argumentos, passagens da Escritura… que tentavam aplicar a todas as circunstâncias e pessoas, de maneira indiscutível e obrigatória.
Jesus, em mudança, não anda citando a ninguém, nem se mostra como representante de nenhuma escola ou tradição, nem multiplica citações, nem sequer ecoa grandes discursos. E não tem inconveniente em “emendar” a sagrada Lei de Moisés, quando esta não ajuda ao homem, mais se converte em uma pesada “carga”, quando marginaliza o homem, quando lhe deixa “excluído” da relação com Deus. Seu ponto de referência para falar e atuar está em si mesmo. É o “SANTO DE DEUS”, é o habitado pelo Espírito de Deus que recebeu em seu batismo, e que o leva a recriar tudo, libertar, restaurar o espírito primeiro que Deus insuflou no homem naquela primeira manhã da criação, e fez calar e expulsou de dentro nossos os males e demônios.
“PRECISAMENTE NA SINAGOGA, TINHA UM HOMEM POSSUÍDO”. Precisamente na sinagoga, onde se multiplicavam as rezas, os cânticos, as pregações e as catequeses. Um “possuído” é alguém que não é dono de si mesmo; desde fora, algo se apossou dele, e lhe impede de tomar suas próprias decisões, e mais, lhe causa dano, o faz dependente, o infantiliza, o anula. São Marcos sugere que aquele homem simboliza os que estão “possuídos” por aquela mentalidade religiosa proclamada pelos escribas, fariseus e sumos sacerdotes? Que é prisioneiro e vítima de uma forma de colocar a religião que, em nome de Deus, anula o homem, o enche de obrigações e rituais… que não lhe permite ser ele mesmo?
A chegada de Jesus supõe certamente o fim desse modo de relacionar-se com Deus, desse sistema religioso em tantos casos desumanizador. Sim, veio para acabar com tantas manipulações (incluídas aquelas que se fazem em nome de Deus), imposições, ritos, normas e práticas… que convertem o homem em alguém estranho a si mesmo (alienado, diríamos com linguagem de hoje). Ele veio para devolver ao homem a si mesmo. E o faz com sua Palavra. Ou melhor, dizendo: COM A PALAVRA QUE É O PRÓPRIO JESUS. Uma Palavra que tem a autoridade dos fatos: o homem fica recuperado, libertado, devolvido a si mesmo. É significativo para mim que Marcos não tenha captado nada de seu discurso: o ensino e a autoridade de Jesus são as obras.
Quem entre nós acredita que não está “possuído” de uma forma ou de outra? Que é isso de espírito imundo?
- A medicina naquela época era muito retrógrada e as doenças eram facilmente atribuídas a causas não naturais, e especificamente ao diabo. Especialmente isso acontecia com doenças mentais: epilepsia, histeria, esquizofrenia…
- Os judeus consideravam que quem não cumpria as leis, era “impuro”, estava sujeito a qualquer castigo de Deus e nas mãos do diabo.
- A verdade é que o mal existe desde o início do mundo com mil roupas e disfarces. E também habita dentro de nós, de onde brotam os instintos animais e as forças sombrias que nos arrastam para o mal: egoísmo, orgulho, ganância, inveja, luxúria… E costumamos culpar o diabo, a tentação, o ambiente… e dizemos: “Quero, mas não posso; eu gostaria de…, mas algo está me segurando…, eu sinto o chamado…, mas não vejo claramente, não me atrevo, não sei se está na hora, talvez não seja prudente…”
Não é muito diferente do que São Paulo experimentou:
Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal. Deleito-me na lei de Deus, no íntimo do meu ser. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. (Rm 7, 19-23)
A “posse” também afeta a sociedade e as pessoas. A retórica da mídia e das redes sociais, os discursos que se valem de “fontes”, personagens, “formadores de opinião” que realmente não têm autoridade ou conhecimento sobre o assunto, ou as previsões, ou as “pesquisas”, ou o que seja É “tendência”, ou o que me convém…
Em outras palavras, quantos “espíritos e demônios” possuem e desumanizam o homem de hoje! Ideologias, estruturas, costumes, tradições, interesses… Pode até ser que a mesma religião (“precisamente na sinagoga”, como nós dito antes) nesta tentação… de esquecer o homem, ou de torná-lo prisioneiro de normas, tradições ou interesses que se colocam acima do bem do homem, embora possam estar revestidos da “vontade de Deus“…
“QUE QUER DE NÓS, JESUS NAZARENO?… SABEMOS QUEM ÉS…”. É uma boa pergunta para nos fazermos continuamente. Aqui são os demônios que a dirigem a Jesus. Mas Jesus não entra em debate com eles. Manda-os calar e atua. Ele confronta aqueles que fazem aquele homem sofrer e o liberta de todos eles.
“QUE QUER DE NÓS?”. Que deixes de manipular o ser humano, que não o prejudique, e deixes de impor fardos e leis asfixiantes, que respeitem sua dignidade…
Por isso todos os seguidores de Jesus devem prestar atenção ao que faz sofrer injustamente o homem, enfrentando isso com eles, tentando que chegue a ser livre e responsável por si mesmo… Porque cada ser humano leva dentro o SOPRO DE DEUS que lhe impulsiona a “viver”. Pode acontecer conosco como os demônios: que “sabemos” quem é Jesus, o que ele fez e o que ele quer e espera de nós… Mas temos medo, trememos e nos incomoda enfrentar o que não nos permite ser nós mesmos ou desumaniza os outros. E acabamos nos acostumando com aqueles “espíritos imundos” (isto é, contrários a Deus).
Jesus imagina a seus discípulos como curadores: “Proclamem que o Reino de Deus está perto: curem doentes, ressuscitem mortos, limpem leprosos, expulsem demônios”. A primeira tarefa da Igreja é curar, libertar do mal, tirar do abatimento, curar a vida, ajudar a viver de maneira saudável. Ser um “hospital de campanha” (Bergoglio). Essa luta pela saúde integral é o caminho da salvação. Ajudar a sentir e visualizar que a FÉ faz bem. Como dizia são Paulo:
“É para que sejamos homens livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão. Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis, porém, da liberdade como pretexto para prazeres carnais. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade” (Gálatas 5, 1.13).
A melhor oração que podemos fazer hoje, à luz deste Evangelho é:
“Senhor, expulsa de nós todos esses demônios, e que tenhamos a força e a valentia para não nos deixar dominar por ninguém… somente pelo Espírito de Deus”. Que assim seja.
Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf
Imagem: José María Morillo
Fonte: Comunidade católica Ciudad Redonda (Missionários Claretianos)