O IV Domingo da Páscoa é considerado o “Domingo do Bom Pastor”, pois todos os anos a liturgia propõe, neste domingo, um trecho do capítulo 10 do Evangelho segundo João, no qual Jesus é apresentado como “BOM PASTOR”. É, portanto, este o tema central que a Palavra de Deus põe hoje à nossa reflexão.
O Evangelho (Jo 10,1-10) apresenta Cristo como o “Pastor”, cuja missão é libertar o rebanho de Deus do domínio da escravidão e levá-lo ao encontro das pastagens verdejantes onde há vida em plenitude (ao contrário dos falsos pastores, cujo objetivo é só aproveitar-se do rebanho em benefício próprio). Jesus vai cumprir com amor essa missão, no respeito absoluto pela identidade, individualidade e liberdade das ovelhas.
A segunda leitura (1Pd 2,20b-25) apresenta-nos também Cristo como o “Pastor” que guarda e conduz as suas ovelhas. O catequista que escreve este texto insiste, sobretudo, em que os crentes devem seguir esse “Pastor”. No contexto concreto em que a leitura nos coloca, seguir o “Pastor” é responder à injustiça com o amor, ao mal com o bem.
A primeira leitura (At 2,14a.36-41) traça, de forma bastante completa, o percurso que Cristo, o “Pastor”, desafia os homens a percorrer: é preciso converter-se (isto é, deixar os esquemas de escravidão), ser batizado (isto é, aderir a Jesus e segui-l’O) e receber o Espírito Santo (acolher no coração a vida de Deus e deixar-se recriar, vivificar e transformar por ela).
Leituras
Em cada linha da leitura que nos foi proposta, está presente a lógica de um Deus que não se conforma com o facto de os homens rejeitarem a sua oferta de salvação e que insiste em desafiá-los, em acordá-los, em questioná-los, até que eles percebam onde está a verdadeira vida e a verdadeira felicidade. Este Deus é, verdadeiramente, o Pastor que nos conduz para as nascentes de água viva.
a este Jesus que vós crucificastes”.
e perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos:
“Irmãos, o que devemos fazer?”
em nome de Jesus Cristo
para o perdão dos vossos pecados.
E vós recebereis o dom do Espírito Santo.
todos aqueles que o Senhor nosso Deus chamar para si”.
“Salvai-vos dessa gente corrompida!”
Naquele dia,
mais ou menos três mil pessoas se uniram a eles.
Palavra do Senhor.
Para as águas repousantes me encaminha, e restaura as minhas forças.
R. O Senhor é o pastor que me conduz; *
para as águas repousantes me encaminha.
1 O Senhor é o pastor que me conduz; *
não me falta coisa alguma.
2 Pelos prados e campinas verdejantes *
ele me leva a descansar.
Para as águas repousantes me encaminha, *
3a e restaura as minhas forças. R.
estais comigo com bastão e com cajado; *
eles me dão a segurança! R.
e com óleo vós ungis minha cabeça; *
o meu cálice transborda. R.
e, na casa do Senhor, habitarei *
pelos tempos infinitos. R.
A segunda leitura apresenta Cristo como o “Pastor” que guarda e conduz as suas ovelhas. Neste contexto, em concreto, seguir o Pastor é responder à injustiça com o amor, ao mal com o bem. Cristo é, de facto, o meu “Pastor”, a minha referência, o modelo de vida que eu tenho sempre diante dos olhos –
tanto nesta como noutras questões?
Quem é que eu ouço, quem é que eu sigo, quem é o meu modelo?
diante de Deus.
a fim de que sigais os seus passos.
antes, colocava a sua causa nas mãos daquele
que julga com justiça.
a fim de que, mortos para os pecados,
vivamos para a justiça.
Por suas feridas fostes curados.
Palavra do Senhor.
Atentemos na forma como Cristo desempenha a sua missão de “Pastor”: Ele conhece as “ovelhas” e chama-as pelo nome, mantendo com cada uma delas uma relação única, especial, pessoal. Dirige-lhes um convite a deixarem a escuridão, mas não força ninguém a segui-l’O: respeita absolutamente a liberdade de cada pessoa. É dessa forma humana, tolerante, amorosa, que nos relacionamos com os outros? Aqueles que receberam de Deus a missão de presidir a um grupo, de animar uma comunidade, exercem a sua missão no respeito absoluto pela pessoa,
pela sua dignidade, pela sua individualidade?
mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante.
ele chama as ovelhas pelo nome
e as conduz para fora.
porque conhecem a sua voz.
porque não conhecem a voz dos estranhos”.
eu sou a porta das ovelhas.
mas as ovelhas não os escutaram.
Palavra da Salvação.
Reflexão
O BOM PASTOR É EXCLUSIVAMENTE JESUS
Falar de “rebanhos”, “ovelhas” e “cordeiros” ao se referir às pessoas ou grupos hoje em dia geralmente causa desconforto e rejeição. Na sociedade civil, essa linguagem não é usada. E entre os crentes… talvez por hábito, tradição bíblica e esforços que fazemos para entender seu significado… ainda a usamos… mas realmente… não é uma terminologia que gostamos muito. E alguns, abertamente, dizem: “Nada de ovelhas, nem de cordeiros, nem de rebanhos manejados por ‘pastores’…!”
Nos últimos tempos nos acostumamos a ser protagonistas e responsáveis, e em muitas áreas (não todas) procuramos escolher quem vai nos guiar ou representar ou assumir responsabilidades. E também exigimos que sejam coerentes, honestos, éticos, que cumpram seus programas e compromissos, que saibam dialogar e negociar pelo bem da maioria…
Hoje mais do que nunca nos rebelamos contra todos aqueles que manipulam as pessoas ou tentam se aproveitar delas, enganá-las ou colocar interesses obscuros à frente. E nunca como agora estivemos mais controlados e espionados por todo tipo de tecnologias. Estamos aprendendo que grandes cadeias de televisão, jornalistas e locutores, programas de rádio e televisão, imprensa, políticos de todas as cores… inventam e difundem mentiras, manipulam dados, selecionam as notícias que lhes interessam…
Por um lado, nos irrita e enfurece quando alguém tenta impor sua forma de pensar ou agir, ou quando nos mentem ou escondem a realidade… Mas por outro… parece que muitos renunciam a pensar por si mesmos, a ser críticos, a contrastar informações e preferem ser “a voz do seu dono” (um político, uma emissora, um jornal, o grupo de amigos, etc.) … Em geral, nos angustia a massificação e nos repele o conformismo e a mentira.
No entanto, o rebanho é um símbolo frequentemente usado pelas Escrituras para se referir ao povo de Deus, que anda como “ovelhas sem pastor”, ou mesmo submetido a maus pastores. E que reserva a imagem de “Bom Pastor” exclusivamente para se referir a Deus.
O que a Bíblia nunca faz ao usar essa linguagem, essas comparações, é propor qualquer coisa que possa soar como timidez, docilidade passiva, manipulação, dependência, absolutização da autoridade dos Chefes ou renúncia à própria liberdade. E nada disso aparece no discurso do Bom Pastor, do qual lemos hoje um fragmento. Ao contrário, enfatiza a liberdade das ovelhas que seguem umas e fogem das outras, conforme reconheçam ou não a sua voz; que não dão ouvidos a ladrões e bandidos que pretendem entrar não pela porta, mas por qualquer outro lugar com a intenção de prejudicar o rebanho.
Jesus aponta a diferença entre o Bom Pastor e o mercenário, entre o bom líder que está a serviço da comunidade, do grupo, e aquele que busca apenas seu próprio benefício. O contexto em que Jesus proferiu essas palavras é polêmico. Na festa da Dedicação do Templo, ele está contrapondo a porta de entrada no Templo (ou seja, o acesso e a comunhão com Deus) com ele mesmo, que é a Porta das ovelhas, que é o único meio de acessar e entrar em comunhão com Deus. E ao mesmo tempo, ele se apresenta como o Bom Pastor cujo sinal distintivo é que dá a vida pelas ovelhas, criando uma unidade e comunhão com elas, como a que ele próprio tem com o Pai que o “enviou”. Os demais pastores não são assim e já não servem para o novo culto e a nova relação com Deus que ele nos traz.
Nós, cristãos, queremos que os Pastores que têm a seu cargo a Igreja sejam autênticas “testemunhas do Evangelho“, empenhados no serviço, em criar de comunhão (que não se confunde com uniformidade), devem escutar com atenção as dores e esperanças do povo de Deus, acompanhando-os e liderando-os, abrindo caminhos, e não temendo se sujar com o barro e os espinhos que sempre acompanham as ovelhas. Eles devem contar verdadeiramente com os leigos, não como meros “ajudantes” que estão abaixo deles, mas de forma sinodal, caminhando juntos sem se sentirem “donos” do rebanho.
O BOM PASTOR É EXCLUSIVAMENTE JESUS, e ninguém pode pretender assumir ou atribuir sua representação, sua autoridade ou qualquer outro aspecto. O próprio Jesus disse: “entre vós, todos irmãos”, a ninguém chameis de “senhor, nem mestre, nem diretor, nem pai…”… porque tudo isso pertence a Deus. Ele está enfatizando que o verdadeiro líder é aquele que serve, e não aquele que busca poder e status. Portanto, os cristãos devem seguir o exemplo de Jesus e buscar ser servos uns dos outros, em vez de buscar posições de poder ou autoridade.
Todos nós precisamos aprender muito com o Bom Pastor: pais, sindicalistas, políticos, empresários, educadores, agentes pastorais… não para ter sucesso ou ganhar votos ou clientes, mas para “SERVIR“, por exemplo
- Compreender os seus (os liderados) é fundamental. Isso significa dedicar tempo, estar próximo, prestar atenção, demonstrar interesse, evitar rotinas, expressar afeto e estar aberto a mudanças para melhorar e aumentar a comunhão entre as pessoas.
- Ele os “defende“, mas não de maneira paternalista, mas sim fazendo causa comum com eles, colocando-se ao lado deles, arriscando-se com eles, “cheirando a ovelha” como repete o Papa Francisco. Especialmente os mais indefesos e vulneráveis. E se atreve a reprovar e defender a verdade, como Pedro faz na primeira leitura, caia quem cair, mesmo que ele mesmo caia. Ele CAMINHA com eles e com eles suporta o frio e o calor, ameaças e desconfortos, fadiga e escassez (pergunte a São Paulo, que tem muito a nos contar sobre isso) …
- “Dá a vida” por todos; isso significa que não se deixa comprar por ninguém e não está especialmente preocupado com aqueles que melhor podem retribuir, obedecer ou pagar pelos seus serviços. “DAR A VIDA” são palavras fortes. Refere-se não apenas à cruz, mas também à vida que há nele: à vida do Espírito, à sua experiência profunda de Deus, às fontes onde ele bebe e que o ajudam a ser feliz e a viver de um modo determinado.
- “Reúne” na unidade (habilidade de dialogar com os diferentes) aqueles que estão dispersos, os atrai, os reconcilia, facilita que saibam estar juntos, cria consciência de fraternidade; ou seja, luta contra o individualismo, as divisões e marginalizações sejam do tipo que forem: todos têm um lugar no rebanho, um lugar especial, diferente…
- Não mantém seus seguidores (uma igreja em saída). Não os isola dos outros, nem está o tempo todo preocupado com os mesmos de sempre, com aqueles que já estão dentro. Procura não estar sempre no centro das atenções; delega, confia e sabe se retirar… Até mesmo deixa as “99 ovelhas” no redil, para ir buscar uma que está perdida. E é que “o bom líder é aquele que se torna progressivamente desnecessário” (Thomas Carruthers).
Mesmo diante de todas as dúvidas e incertezas, de todos os caminhos escuros, o crente vai experimentando Deus como alguém que sustenta, acompanha, protege e defende sua vida, mesmo nos piores momentos. Alguém que nos dá força para recomeçar sempre, alguém que alimenta em nós uma esperança indestrutível quando a vida parece se apagar para sempre; “Eu dou a vida para que tenham vida e a tenham em abundância“. Muitas vezes Ele fará isso através de “bons pastores” – que existem! – até mesmo pastores de outros “rebanhos”.
Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf.
Fonte: MISSIONÁRIOS CLARETIANOS (CIUDAD REDONDA)