A liturgia deste III Domingo do Tempo Comum coloca no centro da nossa reflexão a Palavra de Deus: ela é, verdadeiramente, o centro à volta do qual se constrói a experiência cristã. Essa Palavra não é uma doutrina abstrata, para deleite dos intelectuais; mas é, primordialmente, um ANÚNCIO LIBERTADOR que Deus dirige a todos os homens e que incarna em Jesus e nos cristãos.
Na primeira leitura (Ne 8,2-4a.5-6.8-10), exemplifica-se como a Palavra deve estar no centro da vida comunitária e como ela, uma vez proclamada, é geradora de alegria e de festa.
No Evangelho (Lc 1,1-4;4,14-21), apresenta-se Cristo como a Palavra que se faz pessoa no meio dos homens, a fim de levar a libertação e a esperança às vítimas da opressão, do sofrimento e da miséria. Sugere-se, também, que a comunidade de Jesus é a comunidade que anuncia ao mundo essa PALAVRA LIBERTADORA.
A segunda leitura (1Cor 12,12-30) apresenta a comunidade gerada e alimentada pela Palavra libertadora de Deus: é uma família de irmãos, onde os dons de Deus são repartidos e postos ao serviço do bem comum, numa VERDADEIRA COMUNHÃO E SOLIDARIEDADE.
Leituras
Que lugar ocupa a Palavra de Deus na vida de cada um de nós e na vida
das nossas comunidades? A Palavra é o centro à volta do qual tudo se articula?
Encontramos espaço para ler, para refletir, para partilhar a Palavra?
Naqueles dias:
2O sacerdote Esdras apresentou a Lei
diante da assembléia de homens, de mulheres
e de todos os que eram capazes de compreender.
Era o primeiro dia do sétimo mês.
3Assim, na praça que fica defronte da porta das Âguas,
Esdras fez a leitura do livro,
desde o amanhecer até ao meio-dia,
na presença dos homens, das mulheres
e de todos os que eram capazes de compreender.
E todo o povo escutava com atenção
a leitura do livro da Lei.
4aEsdras, o escriba,
estava de pé sobre um estrado de madeira,
erguido para esse fim.
5Estando num lugar mais alto,
ele abriu o livro à vista de todo o povo.
E, quando o abriu, todo o povo ficou de pé.
6Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus,
e todo o povo respondeu, levantando as mãos:
‘Amém! Amém!’
Depois inclinaram-se
e prostraram-se diante do Senhor, com o rosto em terra.
8E leram clara e distintamente o livro da Lei de Deus
e explicaram seu sentido,
de maneira que se pudesse compreender a leitura.
9O governador Neemias e Esdras, sacerdote e escriba,
e os levitas que instruíam o povo,
disseram a todos:
‘Este é um dia consagrado ao senhor, vosso Deus!
Não fiqueis tristes nem choreis’,
pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei.
10E Neemias disse-lhes:
‘Ide para vossas casas e comei carnes gordas,
tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam,
pois este dia é santo para o nosso Senhor.
Não fiqueis tristes,
porque a alegria do Senhor será a vossa força’.
Palavra do Senhor.
8A lei do Senhor Deus é perfeita,*
conforto para a alma!
O testemunho do Senhor é fiel,*
sabedoria dos humildes. R.
9Os preceitos do Senhor são precisos,*
alegria ao coração.
O mandamento do Senhor é brilhante,*
para os olhos é uma luz. R.
10É puro o temor do Senhor,*
imutável para sempre.
Os julgamentos do Senhor são corretos*
e justos igualmente. R.
15Que vos agrade o cantar dos meus lábios*
e a voz da minha alma;
que ela chegue até vós, ó Senhor,*
meu Rochedo e Redentor! R.
A Igreja é o corpo de Cristo onde se manifesta, na diversidade de membros e de funções, a unidade, a partilha, a solidariedade, o amor, que são inerentes à proposta salvadora que Cristo nos apresentou. A nossa comunidade cristã é, para nós, uma família de irmãos, que vivem em comunhão, que se respeitam e que se amam, ou é o campo onde se enfrentam as invejas e os interesses egoístas e mesquinhos?
Irmãos:
12Como o corpo é um, embora tenha muitos membros,
e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos,
formam um só corpo,
assim também acontece com Cristo.
13De fato, todos nós,
judeus ou gregos, escravos ou livres,
fomos batizados num único Espírito,
para formarmos um único corpo,
e todos nós bebemos de um único Espírito.
14Com efeito, o corpo não é feito de um membro apenas,
mas de muitos membros.
15Se o pé disser:
‘Eu não sou mão, portanto não pertenço ao corpo’,
nem por isso deixa de pertencer ao corpo.
16E se o ouvido disser:
‘Eu não sou olho, portanto não pertenço ao corpo’,
nem por isso deixa de pertencer ao corpo.
17Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido?
Se o corpo todo fosse ouvido, onde estaria o olfato?
18De fato, Deus dispôs os membros
e cada um deles no corpo, como quis.
19Se houvesse apenas um membro, onde estaria o corpo?
20Há muitos membros, e, no entanto, um só corpo.
21O olho não pode, pois, dizer à mão:
‘Não preciso de ti’.
Nem a cabeça pode dizer aos pés:
‘Não preciso de vós’.
22Antes pelo contrário,
os membros do corpo que parecem ser mais fracos
são muito mais necessários do que se pensa.
23Também os membros que consideramos menos honrosos,
a estes nós cercamos com mais honra,
e os que temos por menos decentes,
nós os tratamos com mais decência.
24Os que nós consideramos decentes
não precisam de cuidado especial.
Mas Deus, quando formou o corpo,
deu maior atenção e cuidado
ao que nele é tido como menos honroso,
25para que não haja divisão no corpo
e, assim, os membros zelem igualmente uns pelos outros.
26Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele;
se é honrado, todos os membros se regozijam com ele.
27Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo
e, individualmente, sois membros desse corpo.
28E, na Igreja, Deus colocou,
em primeiro lugar, os apóstolos;
em segundo lugar, os profetas;
em terceiro lugar, os que têm o dom
e a missão de ensinar;
depois, outras pessoas com dons diversos, a saber:
dom de milagres, dom de curas,
dom para obras de misericórdia,
dom de governo e direção, dom de línguas.
29Acaso todos são apóstolos?
Todos são profetas?
Todos ensinam?
Todos realizam milagres?
30Todos têm o dom das curas?
Todos falam em línguas?
Todos as interpretam?
Palavra do Senhor.
A fidelidade ao “caminho” percorrido por Cristo é a exigência fundamental do ser cristão. Ao longo dos séculos, tem sido a defesa da dignidade do homem a preocupação fundamental da Igreja de Jesus? Preocupa-nos a libertação dos nossos irmãos escravizados? Que posso eu fazer, em concreto, para continuar no meio deles a missão libertadora de Cristo?
1Muitas pessoas já tentaram escrever a história
dos acontecimentos que se realizaram entre nós,
2como nos foram transmitidos
por aqueles que, desde o princípio,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra.
3Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso
de tudo o que aconteceu desde o princípio,
também eu decidi escrever de modo ordenado
para ti, excelentíssimo Teófilo.
4Deste modo, poderás verificar
a solidez dos ensinamentos que recebeste.
Naquele tempo:
4,14Jesus voltou para a Galiléia, com a força do Espírito,
e sua fama espalhou-se por toda a redondeza.
15Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam.
16E veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado.
Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado,
e levantou-se para fazer a leitura.
17Deram-lhe o livro do profeta Isaías.
Abrindo o livro,
Jesus achou a passagem em que está escrito:
18‘O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou com a unção
para anunciar a Boa Nova aos pobres;
enviou-me para proclamar a libertação aos cativos
e aos cegos a recuperação da vista;
para libertar os oprimidos
19e para proclamar um ano da graça do Senhor.’
20Depois fechou o livro,
entregou-o ao ajudante, e sentou-se.
Todos os que estavam na sinagoga
tinham os olhos fixos nele.
21Então começou a dizer-lhes:
‘Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura
que acabastes de ouvir.’
Palavra da Salvação.
Fonte: Liturgia Diária – CNBB
Reflexão
O ESPÍRITO DE DEUS ESTÁ SOBRE MIM
O Papa Francisco instituiu o “Domingo da Palavra de Deus” com a intenção de que seja celebrado todos os anos no terceiro domingo do Tempo Comum, como resposta a um desejo do Povo de Deus transferido ao Papa de várias maneiras. A fome da Palavra experimentada pelo Povo de Deus não diminuiu, nem tão pouco a ânsia de transcendência da humanidade. Trata-se de deixar-se transformar pelo Espírito para que possamos realizar ações que ajudem a transformar o mundo. A Palavra de Deus deve ARDER em nossos corações (Lc 24,32) e nos levar a viver mais perto do próximo e a cuidar melhor da casa comum. Ao mesmo tempo, deve erradicar tudo o que afasta a vida das nossas comunidades e do mundo, seja na forma de injustiça, individualismo, indiferença… A Palavra deve estimular-nos a trilhar novos caminhos de partilha e solidariedade. (Henry Omonisaye, CMF)
O quarto Evangelho que meditamos no domingo passado, apresentou-nos um casamento como portal da tarefa missionária de Jesus, com o qual nos falou da Hora de Jesus, da Nova Aliança e da necessidade de um Vinho novo. Lucas, porém (a quem seguiremos pelo resto do ano) escolheu outra cena, outra chave profética, onde a Palavra de Deus faz surgir Jesus para apresentar seu programa, que é muito curto, nem sequer é dele, foi tomado de Isaías e tem só cinco pontos:
- Enviou-me para anunciar o Evangelho aos pobres,
- Enviou-me para anunciar aos cativos a liberdade,
- Enviou-me para dar visão aos cegos,
- Enviou-me para dar liberdade aos oprimidos,
- Enviou-me para anunciar o ano de graça do Senhor.
Primeiro, somos informados de que “Jesus voltou para a Galileia“. O lugar que Jesus escolheu para realizar sua atividade é significativo. Ali, no tempo de Jesus, havia um duplo cativeiro: o da política do governo de Herodes Antipas (4 aC-39 dC) e o da religião oficial. Devido à exploração e repressão política de Herodes Antipas, muitas pessoas ficaram marginalizadas e desempregadas (Lc 14,21: Mt 20,3.5-6). E a religião praticada pelas autoridades religiosas, em vez de fortalecer a comunidade para acolher os excluídos, usou a Lei de Deus para justificar a exclusão de muitos: mulheres, crianças, samaritanos, estrangeiros, leprosos, possessos, publicanos, doentes, mutilados, paraplégicos… Ao contrário da fraternidade que Deus sonhou para todos! Assim, a situação política e econômica, bem como a ideologia religiosa, contribuíram para fragilizar a comunidade local, impedindo assim a manifestação do Reino de Deus. Portanto, o contexto, a situação real do povo, seu sofrimento… define sua opção pela Galileia. É aí que Jesus quer fazer Deus presente, onde Deus tem algo a dizer e fazer, é justamente aí que quer lançar sua proposta para tantos que erraram. Lá ele chega “com o poder do Espírito”.
O “instrumento” que ele usou para discernir sua missão e sua mensagem é a Palavra de Deus. Fazia parte da sua espiritualidade e da sua oração… e a força do Espírito fez com que se sentisse pessoalmente interpelado, a ponto de assumi-la e colocá-la no centro de tudo. Assim foi descobrindo sua vocação. É por isso que ele a “procura” ao desenrolar a Escritura, para se apresentar e compartilhá-la com o povo: é a leitura comunitária, tão importante e habitual, como a primeira leitura também nos descreveu. Leitura que possibilita dar o seu testemunho pessoal.
É por isso que precisamos nos preocupar, saber, meditar, ouvir pessoalmente e juntos a Palavra de Deus. É impossível que a fé permaneça forte, fresca, viva, sem desgaste sem se recorrer frequentemente à Palavra de Deus, assim como Jesus fez. Não podemos ser seus seguidores se não conhecemos sua Palavra, se não nos permitimos ser transformados por ela, se não dialogarmos, se não darmos ao Espírito a oportunidade de nos revelar a vontade de Deus através dela.
A Celebração da Eucaristia é um todo com duas partes inseparáveis e indispensáveis: a PALAVRA e o PÃO DA VIDA. Por isso seria muito conveniente ir às celebrações tendo lido e meditado pessoalmente as leituras que serão proclamadas. Talvez você não as entenda, ou tenha dúvidas. É verdade que não é um livro fácil. É por isso que o padre, ou outros irmãos com formação e experiência, como fez Esdras, poderão nos ajudar.
Continuando a nossa história, Jesus lê: “O Espírito de Deus está sobre mim”. Também o Espírito pairava antes de Deus começar a Criação. Algo novo e cheio de vida vai começar agora também através de Jesus. Foi o Espírito que, em forma de nuvem, acompanhou, guiou e protegeu o povo do Êxodo pelo deserto e que agora “cobre” e acompanha Jesus à frente de um novo Povo. Aquele Espírito que desceu sobre ele no Batismo, ao mesmo tempo em que o Pai proclamou que ele era o Filho Amado. Esse mesmo Espírito que invadiu Davi quando foi ungido por Samuel, e que permaneceu com ele desde então, treinando-o para sua missão (1Sm 16, 12-13). Assim é o nosso Batismo. É esse Espírito que recebemos e que faz São Paulo dizer: “Fomos batizados em um Espírito, para formar um corpo. Você é o corpo de Cristo”. Ou seja: a missão da Igreja (a de Jesus) é “corporativa”, “sinodal”, sem absolutamente ninguém sobrar, sem que ninguém seja excluído ou autoexcluído. É assim que o Espírito quer… desde o tempo de São Paulo. E certamente agora com mais razão.
A mensagem de Jesus é totalmente positiva e esperançosa, vem em nome de Deus para dar ânimo. Por isso, sua leitura se detém e não lê o que vinha na mensagem de Isaías: “o dia da vingança do nosso Deus“. Também nisso coincide com Esdras, quando o povo chora ao se ver denunciado pela Palavra lida: “Não fiqueis tristes nem choreis (porque todo o povo chorou ao ouvir as palavras da lei)”. Em tempos de desânimo, de crise, de desespero… a opção de Deus é levantar, libertar, encorajar, empurrar, despertar para a esperança… Ele não pretende que surjam sentimentos de culpa, mas desejos de mudança!
Quanto aos seus objetivos prioritários, ao qual vai dedicar sua alma, coração e vida são estes: pobres, cativos, cegos e oprimidos. Resumindo: os sofredores, os que “carecem” do que quer que seja. O Espírito o ungiu/consagrou/escolheu e o enviou precisamente para eles. Com atos e palavras. E, portanto, estas devem ser as marcas de seus membros: “armados” com a PALAVRA, formando um Corpo com Cristo, levando em conta as situações vitais dos destinatários… e colocando-os antes de qualquer outra tarefa, opção ou prioridade, não importa quão “santo e sagrado” pode nos parecer. Devemos ser capazes de dizer com verdade que “hoje” a Escritura se cumpre por meio de cada um de nós.
Texto: Enrique Martínez de la Lama-Noriega, cmf
Fonte: Ciudad Redonda