II DOMINGO DA QUARESMA – (ANO A)

A PALAVRA

No segundo Domingo da Quaresma, a Palavra de Deus define o caminho que o verdadeiro discípulo deve seguir: é o CAMINHO da escuta atenta de Deus e dos seus PROJETOS, da obediência total e radical aos planos do Pai.

O Evangelho (Mt 17,1-9) relata a transfiguração de Jesus. Recorrendo a elementos simbólicos do Antigo Testamento, o autor apresenta-nos uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que vai concretizar o seu projeto libertador em favor dos homens através do dom da vida. Aos discípulos, desanimados e assustados, Jesus diz: o CAMINHO do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena e definitiva. Segui-o, vós também.

Na primeira leitura (Gn 12,1-4a) apresenta-se a figura de Abraão. Abraão é o homem de fé, que vive numa constante escuta de Deus, que sabe ler os seus sinais, que aceita os apelos de Deus e que lhes responde com a obediência total e com a entrega confiada. Nesta perspectiva, ele é o modelo do crente que percebe o PROJETO de Deus e o segue de todo o coração.

Na segunda leitura (2Tm 1,8b-10), há um apelo aos seguidores de Jesus, no sentido de que sejam, de forma verdadeira, empenhada e coerente, as testemunhas do PROJETO de Deus no mundo. Nada – muito menos o medo, o comodismo e a instalação – pode distrair o discípulo dessa responsabilidade.

Fonte: Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus

Leituras

A figura de Abraão que nos foi apresentada pelos catequistas de Israel tem sido, ao longo dos tempos, uma figura inspiradora para todos os crentes. Abraão é o homem que encontra Deus, que está atento aos seus sinais e sabe interpretá-los, que responde aos desafios de Deus com uma obediência total e com uma entrega confiada… Esta figura constitui uma interpelação muito forte a esse homem moderno que nunca tem tempo para encontrar Deus nem para perceber os seus sinais, pois está demasiado ocupado em ganhar dinheiro ou em construir uma carreira profissional. Eu tenho tempo para me encontrar com Deus, para aprofundar a comunhão com Ele? A minha resposta aos seus desafios é um “sim” incondicional, ou é uma procura de razões para justificar os meus pontos de vista e esquemas pessoais?

1 Naqueles dias, o Senhor disse a Abrão:
“Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai,
e vai para a terra que eu te vou mostrar.
2 Farei de ti um grande povo e te abençoarei:
engrandecerei o teu nome,
de modo que ele se torne uma bênção.
3 Abençoarei os que te abençoarem
e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem;
em ti serão abençoadas todas as famílias da terra!”.
4a E Abrão partiu, como o Senhor lhe havia dito.
Palavra do Senhor.

No Senhor nós esperamos confiantes,porque ele é nosso auxílio e proteção!

R. Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça,
venha a vossa salvação!

4 Pois reta é a palavra do Senhor,*
e tudo o que ele faz merece fé.
5 Deus ama o direito e a justiça,* transborda em toda a terra a sua graça. R.

18 Mas o Senhor pousa o olhar sobre os que o temem,*
e que confiam esperando em seu amor,
19 para da morte libertar as suas vidas*
e alimentá-los quando é tempo de penúria. R.

20 No Senhor nós esperamos confiantes,*
porque ele é nosso auxílio e proteção!
22 Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça,*
da mesma forma que em vós nós esperamos! R.

Mais uma vez somos convidados a recordar que Deus tem um PROJETO de salvação e de vida plena para os homens, para todos os homens. Quase todos os domingos, a Palavra de Deus convida-nos a tomar consciência desse facto; mas nunca é demais lembrá-lo, até porque os homens do nosso tempo tendem a esquecer Deus e a viver sem a consciência da sua presença, do seu amor, da sua preocupação com a nossa vida, a nossa realização, a nossa felicidade. Se tivéssemos sempre consciência de que temos um lugar cativo no PROJETO de Deus e que o próprio Deus está a velar pela nossa realização e pela nossa felicidade, certamente a vida teria um outro sentido e no nosso coração haveria mais serenidade, mais paz, mais esperança.

Caríssimo:
8b Sofre comigo pelo Evangelho,
fortificado pelo poder de Deus.
9 Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa,
não devido às nossas obras,
mas em virtude do seu desígnio e da sua graça,
que nos foi dada em Cristo Jesus
desde toda a eternidade.
10 Esta graça foi revelada agora,
pela manifestação de nosso Salvador, Jesus Cristo.
Ele não só destruiu a morte,
como também fez brilhar a vida e a imortalidade
por meio do Evangelho,
Palavra do Senhor.

A questão fundamental expressa no episódio da transfiguração está na revelação de Jesus como o Filho amado de Deus, que vai concretizar o PROJETO salvador e libertador do Pai em favor dos homens através do dom da vida, da entrega total de si próprio por amor. Pela transfiguração de Jesus, Deus demonstra aos crentes de todas as épocas e lugares que uma existência feita dom não é fracassada – mesmo se termina na cruz. A vida plena e definitiva espera, no final do caminho, todos aqueles que, como Jesus, forem capazes de pôr a sua vida ao serviço dos irmãos.

Naquele tempo,
1 Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão,
e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.
2 E foi transfigurado diante deles;
o seu rosto brilhou como o sol
e as suas roupas ficaram brancas como a luz.
3 Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias,
conversando com Jesus.
4 Então Pedro tomou a palavra e disse:
“Senhor, é bom ficarmos aqui.
Se queres, vou fazer aqui três tendas:
uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias”.
5 Pedro ainda estava falando,
quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra.
E da nuvem uma voz dizia:
“Este é o meu Filho amado,
no qual eu pus todo meu agrado.
Escutai-o!”
6 Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito
assustados e caíram com o rosto em terra.
7 Jesus se aproximou, tocou neles e disse:
“Levantai-vos, e não tenhais medo”.
8 Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais
ninguém, a não ser somente Jesus.
9 Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes:
“Não conteis a ninguém esta visão até que o
Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.
Palavra da Salvação.

Reflexão

NÓS TEMOS QUE SAIR!

Para chegar ao que você não conhece
Você tem que ir onde você não conhece.
Para chegar ao que você não gosta,
Você tem que ir para onde não gosta.
Para chegar ao que você não possui,
você tem que ir onde você não possui.
Para chegar ao que você não é,
você tem que ir onde você não está.
(São João da Cruz)

Na primeira leitura encontramos um personagem fundamental para as três grandes religiões: Cristianismo, Judaísmo e Islamismo. Nós o chamamos de “Pai dos Crentes“, um modelo de fé, uma referência essencial para o crente.

O trecho do Gênesis o apresenta como um homem já idoso, com sua vida já feita: havia conseguido uma fortuna, abundantes rebanhos e terras, uma boa esposa… mas não se sentia completamente pleno: reconhecia um grande vazio em seu coração. Uma parte importante de seu projeto de vida não havia sido cumprida: uma descendência, um filho que o sucedesse. Podemos dizer que ele havia conquistado tudo o que dependia de seu próprio esforço e sacrifício. Mas o homem nunca fica completamente satisfeito com o que pode alcançar com suas próprias mãos. Neste caso: E tudo isso que eu acumulei: para quê/para quem será?

O Papa Bento dizia:

“As coisas finitas podem proporcionar alguma satisfação ou alegria, mas somente o infinito é capaz de preencher o coração do homem. No fundo da natureza de todo homem encontra-se a inquietação irreprimível que o impulsiona a buscar algo que possa satisfazer este anseio. SÓ DEUS BASTA. Ele sozinho sacia a fome profunda do homem, quem encontrou a Deus, encontrou tudo e, citando São Agostinho, lembrava que nosso coração está inquieto até que  descanse em Ti. Deus veio ao mundo para despertar em nós a sede das grandes coisas“.

Não podemos considerar Abrão (ainda sem o “h” no meio) um “velho“, embora tivesse noventa e poucos anos, porque ainda tinha esperança, inquietudes, ilusões, e não tinha desistido, parece que para ele não existia o “NADA MAIS A FAZER“. Continuava disposto a buscar, a se mover, a se arriscar. Os “sintomas” de que alguém é “velho” (no pior sentido da palavra) têm a ver com “se conformar“, se isolar e se fechar em si mesmo, se tornar mais teimoso e rejeitar o que é diferente, ser “alérgico” às novidades, multiplicar os hábitos fixos e manias, não querer mais complicar a vida, viver do passado e que nos deixem tranquilos…

Essas coisas não estão necessariamente ligadas à idade, mas é verdade que à medida que os anos passam… tornam-se mais frequentes. Não foi o caso do Pai dos Crentes. Parte superior do formulário

E Deus sai ao encontro de Abrão com um convite aparentemente louco ou exagerado: “Sai da tua terra e da casa do teu pai“. Ou seja, deixe os seus costumes e tradições, tudo o que já conquistou, aquilo de que se orgulha e que lhe dá certa segurança, as suas raízes e a sua terra, para a qual tanto esforço dedicou ao longo da vida… porque vê que o seu coração não está feliz.

Oh, como nos custam as mudanças, se pudermos evitá-las ou atrasá-las! Mudar costumes, opiniões, ideias. Compreendemos facilmente Santo Agostinho quando rezava: “Senhor, conceda-me castidade e continência, mas não ainda”, porque tinha medo ser ouvido  cedo.

Acredito que um dos nossos pecados importantes (do qual pouco nos revisamos) é o “conformismo“. O pensador Francesc Torralba escreveu:

Conformar-se com o que existe é começar a morrer. Enquanto somos capazes de nos indignar, discordar, imaginar que outro mundo é possível e lutar por ele, a história está viva. O conformismo é o começo do fim, a consequência da desconstrução de todos os sonhos utópicos. É uma ideologia grave que corrói o mundo. A palavra conformismo deriva do verbo “conformar” e denota a tendência de aceitar cegamente os costumes aceitos pelos outros e parecer com eles, uma tendência que leva à erosão da própria criatividade pessoal e do talento oculto que subsiste no fundo de todo ser humano. Dessa ideologia surge uma atitude tóxica e prejudicial, práticas insalubres, pois consiste, essencialmente, em uma atitude de obediência e resignação, em uma passividade que faz a pessoa negar seu ser, seu talento, sua criatividade potencial, para se perder em vez de ser o autor de sua vida, o senhor de seus atos e de sua existência.

Por isso nos custa imaginar e construir uma Igreja sinodal, paróquias autenticamente evangelizadoras, uma política saudável e comprometida com os problemas reais dos cidadãos, comunidades mais vivas, etc. E continuamos como sempre e com o mesmo de sempre. O Papa Francisco também se referiu a isso:

A habituação seduz-nos e diz-nos que não tem sentido procurar mudar as coisas, que nada podemos fazer perante tal situação, que sempre foi assim e todavia sobrevivemos. Pela habituação, já não enfrentamos o mal e permitimos que as coisas «continuem como estão» ou como alguns decidiram que estejam. Deixemos então que o Senhor venha despertar-nos, dar-nos um abanão na nossa sonolência, libertar-nos da inércia. Desafiemos a habituação, abramos bem os olhos, os ouvidos e sobretudo o coração, para nos deixarmos mover pelo que acontece ao nosso redor e pelo clamor da Palavra viva e eficaz do Ressuscitado. (GAUDETE ET EXSULTATE, 137).

A felicidade, a realização pessoal, o sentimento de plenitude, não podem vir apenas de possuir terras, possuir gado, ter um parceiro, ter o tempo ocupado, ter prestígio e ser respeitado. E menos ainda ao “VER” (e nem sempre queremos ver!) tantos irmãos no mundo que não têm o essencial para viver com dignidade. Como diz uma frase que li na internet: “Já estamos cheios de pessoas que se amam: agora precisamos daqueles que se preocupam com os outros“.

E é que nos faltam as estrelas. Como Abrão, Deus quer que também olhemos para cima, Ele tem planos melhores, tem algo diferente para oferecer, algo em que ainda não embarcamos. Olhar para cima é olhar para Deus, é estar disposto para Deus. No início da quaresma, ainda é uma atitude válida e necessária para irmos além de onde estamos, para pararmos de rodar em torno de nós mesmos, de nossas coisas, de nossas obsessões, de nossos projetos… e que haja em nós uma Nova Vida, aquela que vem do Ressuscitado, como diz o Papa, que é muito mais do que uma estrela do céu: É UM SOL QUE NASCE DO ALTO. Hoje soa para você, para a Igreja, para as paróquias e cada Comunidade… um grito de Deus: NÓS TEMOS QUE SAIR! Sair de onde estamos para chegar ao que ainda não somos nem conseguimos (São João da Cruz, o poema acima), e para isso precisamos deixar o que é sempre o mesmo para trás. Para caminhar… sem saber para onde (a Abrão não foram dadas explicações, apenas instruções: SAIA).

Nesse sentido, podemos ler as palavras de Paulo a Timóteo: É preciso sair dessa vida e dessa fé rotineira, para tomar parte nos duros trabalhos do Evangelho, de acordo com as forças que Deus lhe der. Deixemos que o Senhor nos desperte, nos sacuda de nossa letargia, nos liberte da inércia, como teve que fazer com os apóstolos no Tabor quando ficaram cheios de medo e espanto, para que Ele nos diga: “Levanta-te, não tenhas medo“. O Senhor quer contar com cada um de nós, e com uma Igreja, paróquias e comunidades que parem de olhar para trás (você sabe que Sínodo significa CAMINHAR COM OS OUTROS), porque “farei de ti um grande povo para que todas as famílias do mundo sejam abençoadas“. Todas.

Difícil? Como fazemos isso? Aí é onde entra a “confiança em Deus“. Se Ele está nos pedindo para sair, cabe a nós nos colocarmos em marcha. Abraão ESCUTOU o Senhor e foi fiel a Ele. E ele se cobriu de bênçãos e foi um canal de bênçãos para muitos outros. Hoje recebemos o mesmo convite: “Este é o meu Filho, escutai-o“. “Não tenham medo, levantem-se“.

Hoje nos lembramos dessas palavras, as meditamos em oração e… vamos ver o que acontece! (a não ser que você seja mais velho do que Abraão!). Abraão partiu, como o Senhor lhe havia dito.

Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf.           
Fonte: MISSIONÁRIOS CLARETIANOS (CIUDAD REDONDA)