
No século II, o imperador Adriano (117-138), na tentativa de apagar a memória cristã em Jerusalém, mandou soterrar os lugares santos: sobre o túmulo de Jesus ergueu a estátua de Júpiter, e sobre o Calvário, uma estátua em honra de Vénus. Era uma forma de silenciar a fé. Contudo, nada conseguiu deter os cristãos. Eles continuaram a ir até ali, recordando a paixão e a ressurreição de Cristo. Aqueles lugares, embora profanados, permaneceram vivos na memória do povo de Deus. Mais tarde, em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobriu no Calvário o madeiro da cruz de Cristo. Foram demolidos os templos pagãos e, em seu lugar, nasceu uma basílica cristã, dedicada em 13 de setembro de 335. No dia seguinte, a cruz foi exposta à veneração dos fiéis. Daí nasceu a Festa da Exaltação da Santa Cruz, que não celebra a dor em si, mas o amor revelado no sacrifício de Cristo. Na cruz, contemplamos o Deus que se fez servo, que venceu o pecado e a morte ao entregar a própria vida.
A Primeira Leitura (Números 21,4b-9) relembra o episódio das serpentes no deserto. O povo murmurava contra Deus, e o castigo parecia inevitável. Mas o Senhor ofereceu um sinal de salvação: a serpente de bronze erguida no alto. Quem a contemplava era curado. Esse gesto apontava para algo maior: a cruz de Cristo, levantada para a vida do mundo. O que parecia um instrumento de condenação transformou-se em sinal de esperança.
No Evangelho (João 3,13-17), Jesus revela a Nicodemos o coração do mistério: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigênito”. Não se trata de uma teoria, mas de um amor concreto que se doa até o fim. Olhar para o Crucificado é deixar-se envolver por esse amor que gera vida e não condenação.
Na Segunda Leitura (Filipenses 2,6-11), Paulo contempla a humildade do Filho de Deus. Ele não se agarrou à sua condição divina, mas despojou-se, assumindo a fragilidade humana. Obediente até à cruz, foi exaltado pelo Pai. A cruz, assim, não é apenas sofrimento, mas caminho de glória. É o convite para cada cristão seguir a mesma rota: descer para servir, para depois ser elevado com Cristo à vida plena.
Leituras
Assim como no deserto o povo, ferido pelo veneno, encontrava vida ao erguer os olhos para a serpente de bronze, também hoje somos curados ao contemplar em fé ‘aquele que for mordido e olhar para ela, viverá’.
para contornarem o país de Edom.
Durante a viagem o povo começou a impacientar-se,
“Por que nos fizestes sair do Egito
para morrermos no deserto?
Não há pão, falta água,
e já estamos com nojo desse alimento miserável”.
que os mordiam;
e morreu muita gente em Israel.
Roga ao Senhor que afaste de nós as serpentes”.
Moisés intercedeu pelo povo,
e coloca-a como sinal sobre uma haste;
aquele que for mordido e olhar para ela viverá”.
Quando alguém era mordido por uma serpente,
e olhava para a serpente de bronze,
ficava curado.
Palavra do Senhor.
Ó povo amado, recorda sempre as maravilhas de Deus, pois no hoje da vida Ele ainda se inclina com misericórdia, convidando-nos à fidelidade, enquanto ecoa em nossos corações: ‘Das obras do Senhor, ó meu povo, não te esqueças!’
38 Mas o Senhor, sempre benigno e compassivo,*
não os matava e perdoava seu pecado;
quantas vezes dominou a sua ira*
e não deu largas à vazão de seu furor. R.
No mistério da cruz contemplamos o Filho que ‘humilhou-se a si mesmo: por isso, Deus o exaltou’, e aprendemos que a verdadeira grandeza nasce da humildade que transforma dores humanas em caminhos de ressurreição.
e tornando-se igual aos homens.
Encontrado com aspecto humano,
na terra e abaixo da terra,
– para a glória de Deus Pai.
Palavra do Senhor.
No hoje da história, entre dores e esperanças, ressoa a verdade eterna: ‘É necessário que o Filho do Homem seja levantado’, para que todo coração ferido descubra, na cruz, o amor que salva.
o Filho do Homem.
assim é necessário
que o Filho do Homem seja levantado,
para que não morra todo o que nele crer,
mas tenha a vida eterna.
mas para que o mundo seja salvo por ele”.
Palavra da Salvação.
Homilia
A CRUZ ELEVADA: UM ÍMÃ DE AMOR E UM ESPELHO PARA A HUMANIDADE

Meus irmãos e irmãs em Cristo,
Hoje, a Igreja não celebra um instrumento de tortura, mas uma chave. Um paradoxo glorioso que inverte toda a lógica do mundo. Na Festa da Exaltação da Santa Cruz, somos convidados a olhar para o que há de mais horrível na natureza humana – a nossa capacidade de crueldade, o ódio, a injustiça – e nela vermos brilhar a luz definitiva do amor, da misericórdia e da vida eterna. Como isso é possível? As leituras de hoje nos conduzem por este mistério.
A Primeira Leitura (Nm 21,4-9) nos apresenta um cenário curioso e profundamente simbólico. O povo, no deserto, é mordido por serpentes venenosas como consequência de sua falta de fé e suas murmurações contra Deus e contra Moisés. Qual a solução que Deus oferece? Uma serpente de bronze elevada por Moisés sobre um poste. Todos os que olhassem para ela com fé seriam curados.
Imagine a cena: o remédio para o veneno da serpente é… uma serpente. Não escondida, não negada, mas enfrentada, elevada e transformada em sinal de salvação. A serpente, fonte do mal, torna-se, por desígnio divino, o instrumento da cura. Já percebe para onde isso aponta?
São Paulo, na segunda leitura (Fl 2,6-11), desvenda o mistério com uma das mais belas e profundas palavras da teologia: kenosis – o esvaziamento. Cristo Jesus, “sendo de condição divina, não se apegou ao seu ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo”. Ele, que era a Vida, não veio para ser servido, mas para servir. E o ápice deste serviço, o momento supremo deste esvaziamento, foi a morte na cruz, a morte de um escravo.
E aqui reside o primeiro grande impacto para nós hoje: num mundo obcecado pela autoafirmação, pelo culto ao ego, pela ânsia de aparecer, de ter razão e de subir na vida a qualquer custo, Deus age exatamente ao contrário. A salvação não vem do poder, mas da humildade; não da autossuficiência, mas da entrega; não da vitória esmagadora, mas do aparente fracasso. A Cruz nos interpela: onde estamos depositando nossa segurança? Na acumulação de bens, de likes, de status? Ou na capacidade de nos esvaziarmos, de doarmos nosso tempo, nosso perdão, nosso amor, mesmo quando isso custa caro?
Finalmente, o Evangelho (Jo 3,13-17) coroa esta revelação. Jesus, conversando com Nicodemos, faz a ligação direta e audaciosa: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do Homem, para que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna.”
Jesus não diz “ser crucificado”, mas “ser levantado“. A Cruz é, paradoxalmente, um trono de glória. É o lugar da exaltação. Por quê? Porque nela se revela, em sua forma mais pura e radical, a natureza de Deus: o Amor que não conhece limites. “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único… Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele.”
A Cruz é, portanto, o ímã definitivo do amor de Deus. Ela atrai todos os sofrimentos, todas as dores, todas as injustiças do mundo para dentro do coração de Deus, e os transforma. Ela não é um acidente de percurso na vida de Jesus; é a missão. É o “sim” definitivo de Deus à humanidade, mesmo àquela que o rejeita.
E o que isso significa para nós, hoje?
A Cruz elevada é um espelho. Quando a contemplamos, vemos o reflexo de todo o sofrimento do mundo: a guerra que destrói nações, a fome que consome crianças, a doença que debilita, a solidão que aprisiona, a injustiça que humilha. Mas, ao mesmo tempo, vemos que nenhum desses sofrimentos está fora do alcance do amor de Deus. Ele os assumiu e os redimiu.
A Cruz é também um convite. Ela nos pergunta: O que você está elevando em sua vida? O que você coloca no alto do seu poste como solução para suas dores? O dinheiro? O sucesso? A vingança? A vitimização? Ou você, como fez o povo no deserto, olha com fé para Aquele que foi elevado por você? Olhar para a Cruz é reconhecer que a cura para nosso veneno interior – o pecado, o egoísmo – só pode vir de um ato de amor infinitamente maior.
Celebrar a Santa Cruz é abraçar esta verdade paradoxal. É encontrar força na fraqueza, esperança no desespero e vida na morte. É crer que aquele madeiro áspero e sangrento é, na verdade, a ponte que nos conduz de volta para casa, para os braços do Pai.
Que ao exaltarmos a Santa Cruz hoje, nossos olhos não vejam apenas um símbolo de dor, mas a mais pura expressão de um Amor que se deixou pregar para nos dizer, para sempre: “Você vale isto tudo para mim.”