Cresci em um lar profundamente católico, onde as devoções faziam parte do nosso alimento espiritual cotidiano. Embora a Eucaristia ocupasse o centro da nossa fé, as devoções eram como o tempero que dava sabor à vida espiritual – práticas simples, mas cheias de significado, que moldavam o ritmo dos nossos dias e das nossas almas.
Rezávamos o terço todos os dias, o Ângelus ao meio-dia, e recitávamos ladainhas específicas conforme o mês: a São José em março, a Maria em maio e outubro, e ao Sagrado Coração de Jesus em junho. Durante a Quaresma, o Via Crucis era quase um ritual de sexta-feira, e esperávamos com alegria a missa dos primeiros sábados e primeiras sextas-feiras do mês, confiantes nas promessas divinas associadas a essas práticas. Muitos faziam peregrinações a santuários marianos, levavam medalhas de Lourdes ou Fátima, e guardavam uma devoção particular à Nossa Senhora do Cabo, em Quebec. Tudo isso não era mero costume – era expressão viva da fé, um modo de manter o coração aquecido pela presença de Deus.
Mas, o que podemos dizer sobre essas devoções à luz da teologia e diante de uma cultura moderna que, muitas vezes, as vê com desconfiança?

O OLHAR DA REFORMA
Martinho Lutero e os demais reformadores protestantes viam com cautela as devoções. Eles temiam dois riscos: primeiro, que algumas práticas tivessem se tornado abusivas ou teologicamente frágeis — como a venda de indulgências; segundo, que as devoções, ainda que boas em si mesmas, pudessem desviar o foco de Cristo e da Palavra de Deus. Assim, afastaram-se quase por completo das devoções católicas, mesmo das mais equilibradas.
Essa desconfiança perdura até hoje em muitas tradições protestantes. Embora alguns grupos cristãos não católicos tenham redescoberto o valor simbólico das devoções, ainda prevalece a ideia de que elas são distrações perigosas – ou até um tipo de “comida espiritual processada”, algo que sacia por um instante, mas não nutre de fato a alma.
UM ALERTA NECESSÁRIO
Há sabedoria nesse alerta. Sim, as devoções podem se tornar terreno fértil para uma fé superficial, onde práticas tomam o lugar da Palavra, Maria parece eclipsar Cristo, e a religião se transforma em um sistema de rituais automáticos. É quando o coração se perde na forma e esquece o conteúdo.
No entanto – e aqui está o ponto de equilíbrio – como dizia Goethe, “os perigos da vida são muitos, e a segurança é um deles.” O medo de errar pode nos levar a uma espiritualidade asséptica, limpa demais, mas também fria e desnutrida.
O teólogo anglicano Eric Mascall, contemporâneo de C. S. Lewis e Tolkien, usou uma imagem poderosa: os reformadores, ao temerem a contaminação das devoções, colocaram o cristão em uma “dieta de antissépticos”. De fato, quem vive apenas dessa dieta não sofre envenenamento espiritual – mas corre o risco de definhar por falta de alimento afetivo e simbólico.
UMA TRADIÇÃO QUE FALA AO CORAÇÃO
As devoções – quando bem compreendidas – não são substitutos da fé, mas caminhos que conduzem ao mistério. Elas não competem com a Eucaristia ou com a Palavra; antes, ajudam-nos a saborear mais profundamente esses dons.
A teóloga Wendy Wright, em seu livro O Sagrado Coração: Porta para Deus, descreve as devoções como uma “tradição do coração”. Segundo ela, nelas o ser humano e o divino se encontram de modo íntimo, quase palpável. Ao meditar sobre o Coração de Jesus, não tratamos apenas de um símbolo – tocamos o amor de Deus encarnado, aquele que pulsa no tempo e na eternidade.
Wright escreve com beleza:
“Nessa devoção, nós, Jesus e os santos existimos, de certo modo, fora do tempo. A tradição do coração revela essa comunhão de maneira viva, até misteriosa. É na carne que se descobre essa correspondência divina e humana. Nossos corações de carne foram feitos para tudo o que está além da carne, ao se conformarem ao coração de Jesus. Esse coração divino-humano é a ponte entre o céu e a terra, a marca visível do amor divino na criação, o anseio mais profundo e selvagem do próprio amor humano.”
Essas palavras nos recordam que a fé não é apenas raciocínio ou doutrina – é também afeto, gesto, símbolo, corpo. A devoção é o espaço onde o coração humano se permite ser tocado por Deus.
Portanto, sim, as devoções podem ser mal compreendidas ou mal vividas. Mas, quando enraizadas na Palavra e orientadas para Cristo, tornam-se aquilo que Wendy Wright chama de “um bendito passaporte do coração” – um caminho que nos conduz, de mãos dadas com os santos, do chão da vida ao mistério do Céu.
PERGUNTAS PARA REFLEXÃO:
- Em minha prática de fé, as devoções me aproximam de Cristo ou acabam se tornando um fim em si mesmas?
- Como posso equilibrar razão e coração, doutrina e afeto, em minha vida espiritual?
- Que devoção pessoal tem ajudado meu coração a se tornar mais semelhante ao Coração de Jesus?
Texto: RON ROLHEISER
Fonte: Ciudad Redonda