Em certo sentido, poderíamos dizer que o cristianismo inaugurou uma nova compreensão de “religião”, pois antes dele as comunidades de fé eram majoritariamente étnicas e tribais. Jesus redefine a família da fé de outra maneira: Ele nos revela que não é o ventre do qual nascemos, mas o ventre do qual renascemos que define a nossa verdadeira família. Para Cristo, a genuína família não se fundamenta na biologia, na etnicidade ou na nacionalidade, mas na fé.
E onde Jesus ensina isso? Esse ensinamento percorre quase toda a sua missão como um fio condutor. Porém, torna-se explícito em vários momentos, especialmente quando Ele define sua relação com a própria mãe e o lugar que ela ocupa dentro da comunidade de fé.
Os Evangelhos narram alguns episódios em que Jesus parece tomar certa distância de sua mãe. Em uma ocasião, alguém se aproxima e lhe diz: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo” (cf. Mt 12,47). Mas Jesus responde: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” (Mt 12,48). E, apontando para os discípulos, afirma: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos” (Mt 12,49).
Em outra ocasião, Ele fala a uma multidão quando uma mulher proclama: “Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram!” (Lc 11,27). E Jesus responde: “Antes, felizes aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática!” (Lc 11,28).
Esse diálogo poderia ser reformulado assim: uma mulher, profundamente tocada por Jesus, exclama: “Você deve ter tido uma mãe maravilhosa!”. E Jesus parece responder: “Sim, ela foi maravilhosa, mais do que você imagina. Toda mãe é extraordinária em sua biologia. Mas minha mãe foi ainda mais extraordinária em sua fé”.
À primeira vista, esses episódios podem parecer desconcertantes, como se Jesus estivesse se distanciando de Maria. Mas isso não ocorre. Jesus, na verdade, redefine sua relação com ela, concedendo-lhe um status ainda maior: “Felizes aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a guardam” (Lc 11,28).
Os Evangelhos deixam claro que Maria foi a primeira pessoa a fazer isso plenamente. Ao dizer “Faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38), sua fé se torna mais significativa do que sua biologia.
Por isso, Maria possui um lugar especial dentro da comunidade apostólica, não apenas por ser a mãe biológica de Jesus, mas porque foi a primeira a escutar verdadeiramente a Palavra de Deus e a acolhê-la em profundidade. Sua fé – mais do que seu sangue – é o fundamento de sua dignidade singular.
Com essas respostas, Jesus redefine de forma radical o que constitui uma verdadeira família: é a fé, mais do que a biologia, que determina quem é tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs. Para os cristãos, não é o ventre do qual nascemos, mas o ventre do qual renascemos que estabelece a nossa família. Assim, a verdadeira família não tem como base a etnia, a biologia, a tribo ou a nação. Nada disso nos torna irmãos ou irmãs no sentido mais pleno da palavra “família”.
Essa redefinição de Jesus traz desafios profundos, que muitas vezes preferimos ignorar. Resistem os nossos corações a aceitar uma família tão ampla. Em vez disso, tendemos a reduzir a família da fé às nossas próprias fronteiras biológicas, étnicas, nacionais, denominacionais ou ideológicas – transformando Deus em um deus tribal, nacional, denominacional ou ideológico. Isso não apenas distorce a ideia de família, mas também distorce a própria imagem de Deus. Como disse Nikos Kazantzakis: quando fazemos isso, “o seio de Deus se torna um gueto”.
“Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos e minhas irmãs?”
Essa é a pergunta que ecoa no coração do Evangelho.
E, diante dela, a fé deve prevalecer sobre laços biológicos, afinidades étnicas, identidades nacionais ou pertencimentos ideológicos. Aqueles que escutam a Palavra de Deus e a guardam – estes são para nós mãe, irmãos e irmãs.
A redefinição proposta por Jesus é profundamente necessária para os nossos tempos, marcados por crescentes divisões ideológicas, nacionais e étnicas. Ao definirmos a família de maneira diferente daquela estabelecida por Cristo, abrimos caminho ao nacionalismo cristão e a outras formas de tribalismo que tentam se revestir do Evangelho. Mesmo quando sinceras, tais ideias são equivocadas e, em muitos aspectos, contrárias ao que Jesus ensinou.
Pois, como proclama a Escritura: “Todos nós fomos batizados em um só corpo, quer sejamos judeus ou gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito” (1Cor 12,13).
Na família da fé, não existem “Carlos ou Rolheiser”, nem “americanos ou brasileiros”, nem “britânicos ou portugueses”, nem “brancos ou negros”, nem “liberais ou conservadores”. Nossa verdadeira família, a família em Cristo, transcende tudo isso. E embora não negue a legítima lealdade à família biológica, à denominação ou à pátria, ela nos convida a ir além – a enxergar com os olhos de Deus, que reúne todos num só Espírito.
Perguntas para reflexão
- Como posso ampliar meu coração para viver a fraternidade universal ensinada por Jesus?
- Onde hoje o Evangelho me chama a romper fronteiras para reconhecer o outro como irmão e irmã?
- Como a atitude de Maria – que ouviu e guardou a Palavra – inspira meu próprio modo de viver a fé hoje?
- Quais barreiras interiores ainda me impedem de reconhecer todos os batizados como membros da mesma família espiritual?
- De que forma posso contribuir para que minha comunidade cristã seja menos tribal e mais semelhante à família ampla e inclusiva sonhada por Jesus?
Texto: RON ROLHEISER
Fonte: Ciudad Redonda